JOHN
BUNYAN
A PEREGRINA
Viagem
de Cristiana e seus filhos à
Cidade
Celestial sob a figura de um sonho
COM ILUSTRAÇÕES
DE HAROLD COPPING
SEGUNDA
PARTE DE "O PEREGRINO"
Tradução
do espanhol realizada por Daniela Raffo,
Terminada
em quarta-feira, 2 de janeiro de 2008, 18:51:42.

PRÓLOGO DA SEGUNDA
PARTE DE
"O PEREGRINO"
Vai, meu
livro, onde queira que tenha
Meu
primeiro Peregrino penetrado;
Chama a
todas as portas; se perguntam
Quem é?
Diz que é Cristiana, sem reparo.
Entra,
se te permitem, com teus filhos,
E diz
quem são, de onde vieram.
Talvez
já pelos nomes ou pelos rostos
Os
tenham conhecido; ainda se porém
Não
sabem quem são, pergunta então
Se
passou em suas casas um Cristiano.
Se te
respondem que sim, que com prazer
O viram rumo
à glória caminhar,
Saibam
agora que sua esposa e filhos
Buscam o
céu pelo mesmo andar.
Diz que,
por se fazerem peregrinos,
Cidade e
lar com decisão deixaram;
Que
provaram amarguras, privações;
Que
sofreram suas provas e trabalhos;
Que
tiveram lutas com demônios
E
venceram difíceis obstáculos.
Fala de
aqueles outros, que o caminho
Com
valor e fidelidade completaram,
Porque
buscavam, desprezando o mundo,
A
vontade de Deus executarem.
Fala
também das coisas agradáveis
Com que
são seus desgostos compensados,
E saibam
que os tem o Rei do céu
Sob seu
amor e paternal amparo.
Quão
formosas mansões lhes prepara,
Enquanto
com ventos e ondas vão lutando;
Quão
doce calma gozarão por sempre,
Pois
foram fiéis até o fim, perseverando.
Talvez,
oh, Livro meu, te recebam
Como ao
primeiro, com afetuoso abraço,
E
gozosos te dêem as boas-vindas,
Seu amor
aos viajantes demonstrando.
OBJEÇÃO
I
E se não
acreditassem que sou teu?
E se
pensam talvez que é um engano?
É
possível que um livro se apresente
Qual
Peregrino, sua aparência usando,
E pelo
nome e o disfarce consiga
Entrar
nas casas de alguns incautos.
RESPOSTA
Falsificar
meu Peregrino, é verdade,
Faz já
algum tempo, o pretenderam vários,
Com meu
nome e meu título em seus livros;
Mas
estes, pelo estilo e pelos rasgos,
Pronto
fizeram saber que não são meus,
Mas de
autores que usam nomes falsos.
Se achas
quem isto objete, teu recurso
É dizer
o que dizes, pois é claro
Que
agora ninguém usa tua linguagem,
Nem
tampouco facilmente poderá imitá-la.
Sem,
contudo, persistem na dúvida,
Acreditando
que marcham como ciganos,
Para
enganar e corromper a muitos
Por
todas partes aonde vão passando,
Chamai-me
sem demora, eu testemunho,
Que são
meus Peregrinos sem engano.
OBJEÇÃO
II
E se
talvez pergunto aos que querem
Ver meu
Peregrino condenado,
Ou
quando ouvir minha pergunta enfurecem
Os da
casa em cuja porta eu chamo?
RESPOSTA
Não
temas, Livro meu, esses fantasmas;
Nada
são, não te dêem temores vãos.
Terra e
mares atravessou meu Peregrino,
E não
soube que fosse rejeitado
Em reino
algum, fosse pobre ou rico,
Nem em
desprezo as portas lhe fecharam.
Na
França e em Flandes, onde estão em guerra,
Entrou
como um amigo e um irmão.
Na
Holanda também, segundo falam,
É por
muitos mais que o ouro apreciado.
Serranos
e irlandeses conveniaram
Recebê-lo
com sincero aplauso.
Na
América foi tão acolhido
E olham
para ele com tanto agrado,
Que o encadernam,
o pintam, o embelezam,
Para
aumentar seu conhecido encanto.
Em fim,
que por qualquer lugar que se apresente
Milhares
falam e cantam o louvando.
Se é em
sua pátria, não sofreu meu Livro
Vergonha
nem temor em nenhum lado.
Bem-vindo!,
lhe dizem, e o lêem
Na
cidade o mesmo que no campo.
Não
podem reprimir um bel sorriso
Os que o
vêem vender ou ser levado.
Os
jovens o abraçam e o estimam
Mais que
outras obras de maior tamanho,
E dizem
dele, com gozo: Vale mais
A pata
de minha cotovia que um falcão.
As
senhoritas e as damas, todas,
Lhe
mostram por igual sua boa-vontade,
E ocupa
sempre preferencial espaço
Em
bolsos, corações e em armários;
Porque
às suas almas leva seus enigmas
Com tal
proveito, em benéficos parágrafos,
Que
compensa grandemente a dor de lê-lo,
E mais
que o ouro sabem apreciá-lo.
Até os
pequenos que andam pela rua,
Ao se
encontrarem meu Peregrino ao passo,
O saúdam
e alegres cumprimentam,
Dizendo
que é o moço mais simpático.
Também o
admiram os que não o viram,
Porque
souberam de seus feitos algo,
E
desejam tê-lo, para que lhes faça
De seus
curiosos sucessos o relato.
Os que
não o estimavam num princípio,
Acusando-o
de simples ou insensato,
Por
conhecê-lo já, o recomendam,
E aos
seus o enviam de presente.
Assim,
não temas, minha Segunda Parte;
Alça tua
testa, ninguém te fará dano;
Os que
têm amor para a Primeira
Te
acolherão com gozo e entusiasmo,
Pelas
coisas que dás, úteis e boas,
A
pobres, ricos, jovens e anciãos.
OBJEÇÃO
III
Mas
alguns dirão: Ri tão forte,
Envolve
a cabeça em muita névoa,
E são
suas narrações tão obscuras,
Que não
sabemos como interpretá-lo.
RESPOSTA
Posso
pensar que risos e clamores
Advirtam-se
em seus olhos quando olhá-los.
Coisas
que, talvez, provocam riso,
Um agudo
tormento vão ocultando.
Jacó,
vendo Raquel com suas ovelhas,
Beijou-a,
e à vez vertia o pranto.
Dizem
que há uma nuvem em sua cabeça:
A
ciência assim se cobre com seu manto,
E
estimula à mente a que descubra
O que se
pode achar, pesquisando-o.
O que
parece envolto em frase escura,
Move a
inteligência do cristão,
Para que
estude e tome o conteúdo
Do que
encerram confusos parágrafos.
Eu sei
também que tais obscuros
Não
serão compreendidos sem trabalho,
Mas na
alma ficarão impressos
Mais
facilmente que se fossem claros.
Assim
pois, Livro meu, vai adiante,
Não
percas nem decaia teu bom ânimo;
Não
acharás inimigos, mas amigos,
Que aos
viajantes abrirão os braços.
O que
meu Peregrino deixa oculto
Tu vas,
oh Peregrina, a revelá-lo.
Doce
Cristiana, tu abrirás com chave
O que
deixou em encerro meu Cristiano.
OBJEÇÃO
IV
Porém
alguns desprezam, como ao pó,
O método
que tu vens empregando.
Se me
encontro esses tais, o que eu digo?
Devo,
como desprezam, desprezá-los?
RESPOSTA
Cristiana
minha, se aos tais tu achas,
Vas
demonstra-lhes o amor mais santo;
Não
pagues desprezo com desprezo,
Dai-lhes
sorrisos por seu olhar irado.
Talvez
sua condição seja informe errado,
E a agir
assim comigo o incitaram.
Pessoas
assim acharás em todas partes
Que têm,
em verdade, gostos bem raros;
Nem seus
próprios parentes os estimam,
E
menosprezam os melhores pratos.
Deixa-os,
minha Cristiana, ao seu arbítrio;
Outros
se alegrarão de te ter achado.
Não
contendas jamais; humildemente
De
peregrina mostrarás os hábitos.
Vai
pois, Livrinho meu, mostra para todos
Os que
te estendam carinhosa mão
As boas
coisas, ocultas para os outros;
E tomara
tuas verdades possam tanto
Que
façam de teus leitores, peregrinos,
Melhores
que tu e eu, como desejamos.
Vai
dizê-lhes aos homens quem tu és.
Dize-lhes:
Eu sou Cristiana, e agora trato
De
mostrar, com meus filhos, como se anda
No
caminho do céu, sem desmaio.
Vai
dizê-lhes também que são e quem
Os que
contigo vão peregrinando.
Diz:
Misericórdia é esta amiga
De quem
faz tempo eu me acompanho.
Vendo
seu rosto distinguir poderão
A
diferença entre viajante e vago.
Aprendam,
assim, as jovens nela
A
estimar as riquezas lá do alto.
As
donzelas que vão após de Cristo,
Mundanos
amores desprezando,
Ele as
defenderá como às crianças
E no
Templo com vivas o aclamaram.
Fala
depois de Integridade, o velho,
Fiel
peregrino de cabelos brancos;
Diz que
sua cruz levava em pós de Cristo,
E era
homem simples de elevado grau.
Talvez
com este exemplo se estimulem
Para
seguir a Jesus outros anciãos.
Narra
como Receoso caminhava,
Os dias
em que andava solitário
Com
temores, suspiros e lamentos,
E no fim
ganhou a coroa dos salvos.
Era bom
homem, mas abatido sempre,
E aos
céus chegou perseverando.
Fala de
Fraca-Mente e como andava,
Nunca
adiante, sempre retrasado;
E como
quase morre, se não chegasse
Logo Bom
Coração para resgatá-lo.
Era
fiel, embora fraco fosse ele na graça,
Porém
levava em sua face o selo santo.
De
Prestes-A-Coxear conta sua história.
Este,
com suas muletas, não era mau.
Apenas
se encontrou com Fraca-Mente,
Ficaram
bem de acordo e se estimaram.
Às vezes
um canta e o outro, dança,
E os
dois se complementam, ainda fracos.
Não
esqueças as façanhas de Valoroso,
Dignas
de admiração por ser tão moço;
Descreve
sua bravura, sua destreza,
Ninguém
teve a coragem de desafiá-lo.
Ele e
Bom Coração deram morte
A
Desesperação, assim lutando,
E,
vencido o gigante, em seguida,
O Forte
da Dúvida derrubaram.
Não
deixem de falar de Desalento;
Coloca a
Grande-Temor em teu relato,
Para
mostrar que sem razão temiam,
Pois não
estavam de Deus abandonados.
Com
marcha lenta mas firme andaram
Até o
fim, e o Senhor lhe deu seu abraço.
Ao
acabar tua história, Livro meu,
Pulsa as
cordas que produzem sons tão gratos
Que
fazem dançar o coxo, e ao gigante
Fazem
tremer com pavoroso espanto.
Os
enigmas ocultos em seu seio
Propô-los,
e fiquem explicados,
E o
resto de tuas linhas misteriosas
Deixa
para quem possa penetrá-las.
E tomara
que este Livro para muitos
Seja uma
bênção, possam aproveitá-lo;
Que o
comprador depois não se lamente
De que
foi seu dinheiro, mal empregado.
Sim,
Livro meu, desejo ver teu fruto,
Qual bom
amigo de viajantes santos,
E faças
voltar ao celestial caminho
Os
pobres que vão andando extraviados.
JOHN
BUNYAN
CAPÍTULO
1
O autor,
em seu segundo sonho, encontra-se com o ancião
Sagacidade; começa ele seu relato. Cristiana,
depois da morte de seu esposo, se arrepende, e recebe uma mensagem divina que a
chama à vida de peregrinação.
Agradável
me foi, amados leitores, relatar-vos, tempo atrás, o sonho que tive do
peregrino Cristiano e de sua arriscada viagem à Cidade Celestial, e não duvido
que o meu relato os tenha sido de proveito. Nele contei o que tinham
presenciado, e fiz notar o pouco dispostos que estavam a esposa e filhos de
Cristiano para acompanhá-lo, chegando a tal ponto a sua repugnância que aquele
viu-se obrigado a empreender sozinho a sua viagem, antes de enfrentar o perigo
que o ameaçava se permanecesse mais tempo com eles na cidade
de Destruição.
Desde
então, as minhas numerosas ocupações impediram-me passar novamente pelo povo
nativo de nosso peregrino, de modo que não pude me informar do que tinha
acontecido com a sua família; porém, obrigando-me recentemente os meus negócios
a passar por perto, me dirigi mais uma vez ao mesmo povoado e, ao repousar num
bosque, que distava pouco da referida cidade, tive o seguinte sonho:
Vi que
um ancião passava por onde estava eu recostado e, já que levávamos o mesmo
caminho, me levantei para acompanhá-lo. enquanto caminhávamos, dialogamos,
segundo o costume que têm os viajantes, sendo a nossa conversação sobre
Cristiano e sua viagem.
—Cavalheiro—
perguntei—, que povo é aquele que se encontra ali embaixo, à esquerda?
SAGACIDADE
(assim se chamava)— Aquela é a cidade da destruição. É muito populosa, mas os
habitantes são sumamente preguiçosos e corruptos.
—Já me
parecia— disse eu—; uma vez passei por ali, e sei que lhe cabe perfeitamente o
caráter que você lhe dá.
SAGACIDADE—
Demasiadamente. Tomara que, sem mentir, pudesse falar melhor daquela gente!
— Vejo
que você é pessoa de critério sadio e amante do que é bom. Talvez você tenha
ouvido falar do que aconteceu, algum tempo atrás, naquela cidade, a um tal de
Cristiano, que empreendeu uma peregrinação para as régios celestiais?
SAGACIDADE—
Ouvir falar dele! É claro que sim, e também dos incômodos, penas, lutas e
cativeiros que sofreu no decorrer da viagem. Além disso, devo adverti-lhe que
sua boa fama tem se divulgado por toda a comarca. Poucas pessoas há que, tendo
ouvido falar dele e de seus feitos, não tenha procurado o relado de sua
peregrinação, e me consta que as notícias de sua perigosa viagem atraíram a
outros muitos pelo mesmo caminho; porque se bem, quando ele ainda estava aqui,
todos o reputavam por louco, agora que se foi, todo o mundo fala bem dele.
Dizem que ali onde está agora, está muito melhor; e, de fato, muitos que não
têm o valor necessário para correr os mesmos riscos, ambicionam o bem-estar por
ele conquistado.
—Não
devemos duvidar de sua felicidade, pois agora mora perto da Fonte da Vida, e o
trabalho e a dor já se passaram. Mas, me diga, o que falam dele?
SAGACIDADE—
Falam dele de forma estranha. Uns dizem que agora veste roupas brancas, com
corrente de ouro em volta do pescoço, e cinge sua cabeça uma diadema de ouro
engastada em pérolas. Outros, que os Resplandecentes, que lhe apareceram
durante sua viagem, são agora seus companheiros, e que ali onde habita tem
tanta intimidade com eles como a que aqui existe entre vizinhos. Além disso, se
têm certeza que o Rei daquele país lhe tem proporcionado já uma residência rica
e mais que amena em sua corte; que todos os dias come e bebe, anda e fala com
ele, e que o Juiz de todos lhe pródiga sorrisos e favores. Por outra parte,
alguns afirmam que seu Rei e Senhor visitará em breve estas regiões, e saberá
por que os vizinhos de Cristiano o tiveram em tão pouco e tanto o escarneceram
quando tomou a resolução de ser peregrino. Porque, segundo dizem, Cristiano é
agora tão amado de seu Soberano, e ele se ocupa tanto das afrontas de que foi
objeto, que as considera como inferidas a ele mesmo; e não é estranho, por
quanto o amor que sentia pelo seu Príncipe foi o que o induziu a tão penosa
viagem.
—Pois me
alegro. O pobre repousa de suas fadigas, e agora colhe com regozijo o que
semeou com lágrimas; já está fora do alcance de seus inimigos. Alegro-me também
de que o rumor destes acontecimentos tenha chegado a esta comarca. Quem sabe se
isso influirá no bem de todos os que ficaram! E o que se sabe de sua esposa e
filhos? Os compadeço de verdade.
SAGACIDADE— Como!
Cristiana e seus filhos? Estes, segundo todas as probabilidades, alcançarão a
mesma sorte que ele; pois ainda que num princípio agiram tolamente, e não se
deixaram persuadir nem pelas lágrimas nem pelas súplicas de Cristiano,
posteriores reflexões acerca daquele assunto operaram maravilhas neles; assim
sendo, efetuados os devidos preparativos, empreenderam a mesma carreira.
—Melhor
que melhor!— exclamei—, mas, você está seguro que todos eles tomaram essa
determinação?
SAGACIDADE—
Pode acreditar em mim; e para maior certeza, eu me encontrava precisamente no
povo quando eles partiram, motivo pelo que estou à par de tudo, e enquanto
caminhamos lhe contarei todos os incidentes daquele acontecimento. Cristiana
(tal seu nome desde o dia em que ela e seus filhos principiaram a vida de
peregrinação), uma vez que seu marido atravessou o rio, e já não recebeu mais
notícias dele, viu-se assaltada por lúgubres pensamentos, e em sua dor vertia
abundantes lágrimas, pois com a partida de seu marido viu rompido o vínculo
amoroso que os unia; porque, como pode alguém deixar de sentir ver-se separado
dos seres queridos? Mas não foi esta a única causa da dor. Também começou
Cristiana a se perguntar se seu marido na teria sido tirado dela como castigo
pela conduta não decorosa que tinha observado com ele. Entregue de cheio a um
fervedouro de pensamentos, viram a sua memória as asperezas que tinham
caracterizado a sua conduta, o mal que tinha correspondido ao carinho de aquele
que nunca deixara de ser seu fiel amigo. Abrumado já seu coração por tão
tristes lembranças, seu quebrantamento subiu do pronto ao se lembrar das
amargas lágrimas e os lamentos e gemidos de seu inconsolável esposo, quando ela
se obstinou em não acompanhá-lo. não podia esquecer as palavras e feitos de
Cristiano enquanto gemia sob o peso de sua carga, e isso, voltando-se contra
seu coração, o desgarrava por completo. Sobre tudo, vibrava em seus ouvidos com
lastimosos acentos aquele doloroso grito que costumava lançar: "O que devo
fazer para ser salvo?"
Não
podendo reprimir mais a angústia que a embargava, participou os seus filhos,
dizendo:— Filhos meus, estamos perdidos. Como conseqüência de meu pecado, nos
vemos separados de vosso pai. Suplicou-me que o acompanhássemos, mas eu não
quis ir, e assim impedi que vocês alcançassem a vida eterna.
Quando
isto ouviram, os rapazes começaram a chorar, manifestando desejos de ir após
seu pai.
—Oxalá!—
exclamou Cristiana— tivéssemos a felicidade de acompanhá-lo! melhor sorte teríamos
que a que agora, segundo parece, nos caberá; pois, ainda que antes loucamente
me figurava que os tormentos de vosso pai procediam de um vão capricho ou de
uma excessiva melancolia, agora me consta que a sua origem é muito diferente;
ou seja, que tinha sido entregue a ele a Luz das luzes, com a ajuda da qual
fugiu, segundo vejo, dos laços da morte."
—Aí de
nós!— exclamaram todos chorando amargamente.
A noite
seguinte, Cristiana sonhou ver aberto diante dela um largo rolo de pergaminho,
no qual estavam escritas todas as suas ações. O aspecto desta lista parecia-lhe
sumamente sombrio e, embora estivesse dormida, não pôde menos que lançar um
grito, bradando: "Senhor, sé propício a esta pecadora!", o que foi
ouvido pelos seus filhos.
Depois
disto, parecia-lhe ver ao lado de seu leito dois seres de ma índole, que
diziam:— O que faremos desta mulher, já que, tanto dormida quanto acordada,
pede misericórdia? Se lhe é permitido continuar deste jeito, a perderemos como
temos perdido já seu marido. De uma forma ou de outra, é preciso distraí-la
para que deixe de pensar na outra vida, pois, caso contrário, nada neste mundo
poderá impedi-la de ser peregrina.
Presa de
grande horror, acordou Cristiana, tremendo e suando com profusão; porém tendo
adormecido novamente, seus sonhos tomaram outra forma. Desta vez pareceu-lhe
ver seu esposo na glória, rodeado de seres imortais, tendo em sua mão uma
harpa, a qual tangia diante de um, assentado num trono, com um arco-íris sobre
sua cabeça. Depois o viu inclinar-se humildemente, voltando seu rosto para o
escabelo que havia sob os pés do Rei, e dizer:— Com todo o meu coração dou
graças a meu Senhor e Rei por me ter trazido a este lugar—. Então os circunstantes
alçaram a voz e tangeram suas harpas; mas ninguém podia compreender suas
palavras senão somente Cristiano e seus companheiros.
Na manhã
seguinte, depois de ter orado a Deus e falar um tempo com seus filhos, ouviu
Cristiana que chamavam fortemente à porta.
—Avante—
disse—, se vem você em nome de Deus.
—Amém— respondeu
o recém chegado; e abrindo a porta, saudou com as palavras:
— A paz
seja nesta casa— Depois prosseguiu dizendo:— Sabes, Cristiana, com que objeto
venho?
O
coração dela ardia em desejos de saber de onde e por que ele vinha; porém,
cobrindo o rubor de seu rosto, se manteve calada.
—Meu nome é Segredo—
disse o visitante—, e moro com os que são da alta esfera. Naquele lugar corre o
rumor de que anseias dirigir-te para lá, e que te pesa o mal que fizeste ao teu
marido, endurecendo teu coração para não acompanhá-lo, e criando estes teus
filhos na ignorância. O Misericordioso me enviou a ti, Cristiana, para te dizer
que é um Deus pronto a perdoar e que se deleita em remir ofensas. Além disso,
convida-te a entrar em sua presença e a sentar-te a sua mesa, onde te
alimentará com as deliciosas refeições de sua casa, e dar-te-á a herança de
Jacó teu pai. Ali reside aquele que era teu esposo, junto com legiões de
companheiros, todos espíritos redimidos, que sempre contemplam o rosto de seu
Deus, e se alegrarão todos de ouvir teus passos no umbral da casa de teu Pai.

Cristiana,
baixando a cabeça, ruborizava-se, enquanto seu visitante continuou falando:
—Eis
aqui uma carta que te trago de parte do Rei.
Da
carta, que estava escrita em letras de ouro, desprendia-se um aroma delicioso.
Em seu conteúdo manifestava o Rei o desejo de que Cristiana seguisse o exemplo
de seu marido, por quanto esse era o único modo de que conseguisse chegar a sua
cidade e morar em sua presença com sempiterno gozo. Dominada pelas suas
emoções, a mulher exclamou:
—E você
quer nos levar a mim e aos meus filhos, para que vamos adorar o Rei?
Respondeu
o visitante:
—O
amargo tem de vir antes que o doce. Para chegar à Cidade Celestial terás que
passar por penas e dificuldades, como o fez quem te precedeu. Faze o mesmo que
ele: dirige-te à portinha que vês no outro extremo da planície: nela começa o
caminho que vas seguir, Deus te acompanhe. Também te aconselho que guardes
cuidadosamente no teu seio esta carta; leiam-na, tu e teus filhos, até que a
saibais de cor, já que é um dos cânticos que devereis elevar durante todo o
tempo de vossa peregrinação. Também deverás entregá-lo em tua chegada à porta
celestial.
(Vi em
meu sonho que o ancião, ao me relatar a história, parecia fortemente comovido;
porém, recuperando a tranqüilidade, reiniciou sua narração).
Cristiana
em seguida reuniu seus filhos e falou-lhes nos seguintes termos:
—Filhos
meus, desde um tempo atrás, como já notastes, minha alma está sumamente
afligida, a causa da morte de vosso pai; não porque no mais mínimo duvide de
sua felicidade, pois estou convencida do gozo que desfruta; mas me preocupa em
alto grau o estado miserável em que nos encontramos e, mais que nada, a
lembrança de meu comportamento para com vosso pai. Não quis acompanhá-lo, nem
deixei que o acompanhasses. Ante a evidência de minha culpa, sinto como o
remorso corrói meu coração, e sem o sonho que ontem noite tive e as agradáveis
esperanças que esta manhã me deu este senhor, tão amargas lembranças
concluiriam com a minha existência. Vamos, filhos, arrumemo-nos e marchemos
rumo a porta que nos dará entrada ao caminho, para que vejamos vosso pai e
estejamos com ele e seus companheiros de viagem, segundo as leis do país
celestial.
Vindo
sua mãe assim disposta, as crianças prorromperam em lágrimas de gozo.
Cumprido
seu encargo, o mensageiro despediu-se e eles começaram imediatamente a fazer os
preparativos para a viagem.
CAPÍTULO
2
Cristiana
recebe a visita de duas vizinhas. Temerosas,
procuram dissuadi-la de marchar; porém Misericórdia
decide-se a acompanhá-la.
A ponto
de partir, estavam Cristiana e seus filhos, quando duas vizinhas chamaram à
porta.
—Entrai—
disse Cristiana—, se vindes em nome de Deus.
As
mulheres ficaram atônitas; não estavam costumadas a ouvi-la empregar semelhante
linguagem. Ainda assim, entraram, e ao ver que sua vizinha estava se arrumando
para marchar-se:
—O que
significa isto?— exclamaram a única voz.
—Estou
me preparando para uma viagem— respondeu Cristiana, dirigindo-se à mais velha
das duas, que se apelidava Temerosa (esta era filha do sujeito que encontrou a
Cristiano no morro Dificuldade, e quis dissuadi-lo a retroceder por temor dos
leões.
TEMEROSA—
Para que viagem?
CRISTIANA—
Para seguir a meu marido— e novamente se encheram seus olhos de lágrimas.
TEMEROSA—
Espero que não farás tal coisa. Pensa em teus filhos e não sejas néscia.
CRISTIANA—
Meus filhos me acompanharão. Nem um deles quer ficar.
TEMEROSA—
Quem te colocou na cabeça estas idéias extravagantes?
CRISTIANA—
Oh, amiga minha! Se soubesses o que eu, não duvido que irias comigo.
TEMEROSA—
Vejamos! Que novo saber é este, que te induz a te indispor com tuas amigas, e
sair a caça de quimeras?
CRISTIANA—
A saída de meu marido deixou-me muito aflita e, sobre tudo, desde que
atravessou o rio fiquei profundamente angustiada. O que mais me inquieta é a
diferença de minha conduta para com ele, enquanto gemia sob o peso de sua
carga. Além disso, sinto agora a mesma resolução que o meu marido sentia, e de
qualquer jeito quero começar minha peregrinação. Ontem a noite sonhava que o
via. Tomara estivesse com ele! Mora já em presença de seu Rei; assenta-se com
ele e come a sua mesa. É companheiro agora de seres imortais, e o palácio mais
luxuoso do mundo parece-me um chiqueiro em comparação da morada que lhe foi
proporcionada. O mesmo soberano me fez chamar com promessas de uma acolhida
carinhosa, se acudo a Ele. Seu mensageiro acaba de sair, tendo me trazido uma
carta de convite.
Ato
seguido sacou a carta e a leu, agregando:
—Então,
o que opinas disto?
TEMEROSA—
Que teu marido foi um bobalhão, por ter-se aventurado tão temerariamente, e que
tu não ficas para trás. Acaso não ouviste falar das dificuldades com que
tropeçou teu marido logo que deu o primeiro passo por aquele caminho? Disto, os
nossos vizinhos Obstinado e Flexível podem dar fé, pois o acompanharam, até
que, como homens inteligentes, tiveram medo de avançar mais. Avante, ouvimos
contar os encontros que teve com os leões, com Apolião, com a Sombra-da-Morte e
muitas outras coisas. Não deves também não esquecer do que lhe aconteceu na
Feira da Vaidade; e se ele, que era homem, passou por tantos apuros, que podes
fazer tu que não és senão uma débil mulher? Repara em que estes quatro anjinhos
são teus filhos, tua carne e teus ossos. Ainda que não estimes tua vida, tem compaixão
do fruto de teu corpo e fica em casa.
Mas
Cristiana respondeu nos seguintes termos:
—É
inútil quanto digas, vizinha. Eis que me é oferecida uma ocasião oportuna para
alcançar as riquezas eternas, e seria realmente néscia se desprezasse tal
oportunidade. Embora me fazes lembrar as penas e dificuldades que provavelmente
deverei aturar no caminho, estas, longe de me desanimar, convencem-me de que
tenho razão. Antes que o doce tem de vir o amargo, e isso mesmo realça a doçura
daquilo. Portanto, já que não vens em nome de Deus, como disse, rogo-te que te
retires e me deixes em paz.
Depois
de proferir algumas injúrias, dirigiu-se Temerosa a sua companheira:
—Vamos,
amiga Misericórdia —disse—; já que rejeita estes conselhos e despreza a nossa
companhia, deixemo-la.
Porém
ela não estava disposta a abandonar tão facilmente sua vizinha, por duas
razões: primeira, por quanto sentia um amor entranhável para Cristiana e dizia
para sim: "Se está decidida a marchar, a acompanharei um pouco e a
ajudarei no que possa". Além disso, não se sentia muito tranqüila com
respeito a sua própria alma, e as palavras de Cristiana a haviam impressionado
bastante. Por isso refletia para sim deste modo:
—Falarei
com ela mais detidamente a sua própria alma, e se encontro que não tem padecido
nenhuma alucinação, a acompanharei.
Assim
determinada, replicou a sua vizinha:
—Espero
que não tomes a mal que eu fique; mas já que Cristiana está se despedindo de
seu país, tenho desejos de acompanhá-la um pouco, já que tão formosa está a
manhã.
Guardou,
porém, para ela mesma a sua segunda razão.
TEMEROSA—
Vamos! Vejo que tu também estás para loucuras; porém antes que seja demasiado
tarde, olha bem o que fazes. O perigo, com cuidado, disse o outro; e quem busca
o perigo, nele perece. Adeus.
Dito isto,
separaram-se; Cristiana, para empreender sua viagem, e Temerosa, para voltar a
sua casa. Uma vez ali, mandou chamar umas quantas vizinhas suas, que eram as
senhoras Obcecada,
Desconsiderada,
Leviandade
e Ignorância.
Quando chegaram, as comunicou do acontecido com Cristiana e de sua projetada
viagem.
—Tendo
pouco a fazer nesta manhã —disse—, fui fazer uma visita a Cristiana. Ao chegar
a porta chamei, segundo nosso costume, e me respondeu: "Se vens em nome de
Deus, entra". Entrei, pois, sem suspeitar que houvesse novidade; porém a
achei arrumando-se para sair do povo com seus filhos. Perguntei-lhe o que
significava aquilo e, em resumidas contas, disse-me que era seu ânimo ir em
peregrinação como fez seu marido. Contou-me também um sonho que teve, e como o
Rei do país onde agora habita seu esposo tinha-lhe enviado uma carta
convidando-a a dirigir-se para lá.
IGNORÂNCIA—
Como! Tu achas que irá?
TEMEROSA—
Sim que irá, aconteça o que acontecer; e te direi por que assim o creio. O que
para mim era uma argumento poderoso para persuadi-la a abandonar a empresa (ou
seja, as penas e fadigas que certamente achará no caminho), é para ela um
grande incentivo para empreender a viagem, pois me disse, palavra por palavra:
"Antes que o doce tem de vir o amargo, e isto mesmo realça a doçura
daquilo".
OBCECADA—
Veja uma mulher cega e louca! E não escarmentou com as aflições de seu marido?
De minha parte, estou segura que se ele estivesse novamente aqui se contentaria
com salvar a pele e não correria tantos riscos por nada.
A
senhora Desconsiderada tomou a palavra, dizendo:
—Vão
embora quando queiram do povo loucos tão fantásticos! Boa liberação, digo eu.
Embora ficasse, se continuar com essas idéias, ninguém poderia viver
tranqüilamente ao seu lado, pois ou estaria melancólica e irascível com os
vizinhos, ou falaria de assuntos que ninguém de bom juízo pode aturar. Eu os
prometo que não chorarei sua partida: que vá em boa hora, e venham outros
melhores em seu lugar. O mundo degenerou muito desde que abundam estes contumazes
idiotas.
Depois
agregou a senhora Leviandade:
—Vamos,
deixemos estes assuntos e falemos de outra coisa. Ontem estive em casa da
senhora Sensualidade,
onde nos divertimos muito. Ali estavam a senhora Amor-Carnal com outras três ou
quatro, além do senhor Luxurioso, a senhora Impureza e outros. Nos entretiveram
com música e danças e tudo quanto podia construir nosso prazer. Certamente a
dona de casa possui uma educação esmerada e o senhor Luxurioso é também um
finíssimo cavalheiro.
CAPÍTULO
3
Cristiana
e Misericórdia dirigem-se à porta estreita, onde são recebidas.
Entretanto
Cristiana, acompanhada de seus filhos e de Misericórdia, prosseguia seu
caminho. Enquanto caminhavam, iniciaram o seguinte diálogo:
CRISTIANA—
Amiga Misericórdia, considero como um favor inesperado que venhas fazer-me
companhia por um tempo.
A jovem,
que ainda era de mui tenra idade, respondeu:
—Se
acreditasse que fosse vantajoso ir contigo, não voltaria jamais ao povo de que
saímos.
CRISTIANA—Não
temas, e une a tua sorte à nossa; bem sei eu qual será o fim de nossa
peregrinação. Meu marido não trocaria sua sorte por todo o ouro do mundo. Não
creio que sejas rejeitada, ainda que vás por convite meu. O Rei, quem nos
mandou buscar, é tudo misericórdia. Além disso, se tens algum reparo, podes
acomodar-te comigo e acompanhar-me em qualidade de serva; a tudo me disponho e
tudo compartiremos, com tal que me acompanhes.
MISERICÓRDIA—
Mas quem pode me assegurar que serei recebida? Se me fosse oferecida esta
esperança, por incômodo que fosse o caminho, iria sem duvidar, confiando na
ajuda do Todo Poderoso.
CRISTIANA—
Pois ouve então, querida Misericórdia, e faze o que te falo: vem comigo à porta
estreita, e ali perguntaremos mais definitivamente acerca de ti. Se não te
receberem, consentirei que voltes para teu povo. Ainda te recompensarei a
bondade que a mim e aos meus filhos nos manifestas acompanhando-nos deste modo.
MISERICÓRDIA—
Nesse caso irei, e me conformarei com o que resulte. Tomara que o Senhor do
Reino seja benévolo comigo!
Muito se
alegrou Cristiana ao ouvir isto, não somente porque já tinha uma companheira,
mas também porque havia persuadido esta donzela a se interessar pela própria
salvação.
Caminhando
juntas, Misericórdia começou a chorar.
—Por que
choras tanto? —perguntou sua companheira.
Misericórdia—
Aí! Quem pode não afligir-se ao considerar o estado lastimoso em que estão meus
pobres parentes, que ainda permanecem em nossa cidade pecaminosa? E o que
agrava a minha dor é saber que não têm quem os instrua e os advirta o que vai
lhes acontecer.
Cristiana—
Convêm aos peregrinos compadecer-se dos outros. Agora fazes pelos teus o que
fazia meu bom Cristiano comigo; afligia-se e se lamentava porque eu não fazia
caso dele; porém seu Senhor e o nosso recolheu suas lágrimas e as colocou em sua
redoma, e agora tu e eu, igual que estes queridos meninos, obtemos o fruto e
proveito delas. Espero que tuas lágrimas também não se perderão, pois a Palavra
nos diz: "Os que semeiam em lágrimas segarão com alegria. Aquele que
leva a preciosa semente, andando e chorando, voltará, sem dúvida, com alegria,
trazendo consigo os seus molhos" [1].
Então
cantou Misericórdia:
Seja o
Bendito meu guia,
Se é sua
santa vontade,
Até a
porta do céu,
Monte de
sua Santidade.
E não me
permita nunca
De seus
caminhos sair,
Nem
vagar extraviada,
Ainda
que deva sofrer.
Recolha
a todos os meus
Que
detrás de mim deixei;
Faz,
Senhor, que sejam teus,
Cheios
de amor e de fé.
Quando
Cristiana chegou no Pântano da Desconfiança, e lembrou-se do perigo em
que esteve seu esposo de perecer afogado no lodo, sentiu por um instante
vacilar suas forças. O caminho apresentava-se eriçado de dificuldades e
perigos, e a pesar das ordens do Rei para que o fizessem transitável, estava
pior que antes.
Interrompi
então o relato de meu ancião amigo para perguntá-lhe se era verdade o que se
referia ao Pântano.
—Sim
—respondeu—, demasiadamente verdade. Existem muitos que, fingindo-se operários
do Rei, dizem que estão encarregados da reparação do caminho, e no entanto, em
vez de pedras jogam lama e esterco, deixando-o pior em vez de melhorá-lo.
Diante dos
obstáculos que se apresentavam, detiveram-se, vacilando Cristiana e seus
filhos; porém então Misericórdia, demonstrando mais valor, disse-lhes:
—Não
desconfiemos e continuemos adiantando-nos com precaução.
E, animados com estas palavras, internaram-se
no Pântano, realizando grandes esforços para atravessar o lamaçal. Cristiana
esteve várias vezes em iminente perigo de cair no lodo, mas no fim conseguiram
ganhar a beira oposta; uma vez a salvo, acharam de ouvir uma voz que lhes
dizia: "Bem-aventurada a que acreditou, porque se cumprirão as coisas que
lhe foram ditas de parte de seu Senhor".
Começando
novamente a andar, Misericórdia fez então a seguinte observação:
—Se como
tu eu tivesse a certeza de encontrar uma carinhosa acolhida na portinha, acho
que nenhum Pântano da Desconfiança alcançaria para me desanimar.
—Bem
—respondeu Cristiana—, tu conheces tua chaga e eu a minha; não é este a única
complicação que acharemos antes de dar termo a nossa viagem. Os que nos
propomos alcançar tão excelente glória seremos hostilizados pelos que nos
aborrecem e invejam e nossa felicidade; acredita em mim.
Neste
ponto Sagacidade despediu-se de mim, e eu segui sonhando. Vi os nossos
peregrinos aproximar-se da porta. Uma vez frente dela, começaram a discutir a
melhor forma de chamar, e o que iriam dizer ao porteiro. Por fim combinaram que
Cristiana, sendo a mais velha, chamasse em nome de todos e expusesse seus
desejos ao porteiro. Em seguida começou a chamar, dando grandes golpes com a
aldrava da porta, como tinha feito seu esposo. Porém, a única resposta que
ouviram foram os uivos de um grande cão, o que os encheu de espanto, e naquele
momento não se atreveram a chamar de novo, por temor que o mastim se lançasse
sobre eles. Estavam já em grande perturbação de espírito, não sabendo o que
fazer; não ousavam chamar por causa do cão, e temiam retroceder por temor que o
guardião da porta os visse e se irasse com eles. Decidiram-se, finalmente, a
chamar de novo, o que fizeram com maior veemência que antes.
—Quem
está aí? —perguntou o porteiro. O cão, ouvindo sua voz, cessou de latir e a
porta foi aberta.
CRISTIANA
(Inclinando-se com um gesto de reverência)— Não se ire o Senhor com suas
servas, por terem tido a temeridade de chamar a sua real porta.
—De onde
vindes? —perguntou-lhes o porteiro—. O que desejam?
CRISTIANA—
Chegamos do mesmo lugar de onde veio Cristiano e com o mesmo objeto; isto é, se
vos apraz, que nos seja aberta a entrada por esta porta para a via que conduz à
Cidade Celestial. À segunda pergunta, respondo ao meu Senhor que sou Cristiana,
em outro tempo esposa de Cristiano, o qual tem alcançado já a glória.
Maravilhado,
o porteiro exclamou:
—Como! É
peregrina agora aquela que pouco tempo atrás aborrecia semelhante vida?
—Sim, Senhor
—disse ela, inclinando de novo a cabeça—, e também o são estes meus filhos.
Então a
tomou pela mão e a admitiu, dizendo ao mesmo tempo:
—Deixai
que as crianças venham a mim —e assim falando, fechou a porta. Logo deu ordens a
um pregoeiro que havia no terraço, sobre o portal, para que celebrasse sua
chegada com aclamações de júbilo e som de trombetas. Ao instante o mandado foi
executado, e os ares ressoavam com suas notas melodiosas.
Entretanto,
a pobre Misericórdia estava fora, tremendo e chorando, acreditando-se
rejeitada. Porém, Cristiana, tendo já conseguido ser admitida juntamente com
seus filhos, começou a interceder em favor de sua amiga.
—Senhor
meu —disse—, ainda há lá fora da porta uma companheira minha, que vem com a
mesma intenção que nós; está sumamente abatida de ânimo porque vem, no seu
parecer, sem ser convidada, enquanto que eu fui chamada pelo Senhor de meu
marido.
Misericórdia,
que começava já a impacientar-se, e a quem cada minuto parecia-lhe uma hora,
impediu que Cristiana intercedesse mais, chamando ela mesma a porta. Tão fortes
batidas deu, que Cristiana sobressaltou-se.
—Quem
chama? –perguntou o porteiro.
—É a
minha amiga —disse a mulher.
Abrindo
então a porta, olhou para fora e viu que Misericórdia tinha caído desmaiada,
temendo não ser recebida.
Então,
tomando-a pela mão, lhe disse:
—Moça,
levanta.
—Ah, Senhor!
Estou muito fraca; apenas tenho um sopro de vida.
Mas o
bom Senhor respondeu-lhe:
—Há um
que disse "Quando desfalecia em mim a minha alma, lembrei-me do SENHOR;
e entrou a ti a minha oração, no teu santo templo" [2]. Não temas, mas
levanta e di-me por que vens.
MISERICÓRDIA—
Venho em busca de aquilo para o que não fui chamada, como o foi a minha amiga.
Seu convite foi de parte do Rei; o meu só foi de parte dela. Por isso temo.
PORTEIRO—
Rogou-te ela que viesses aqui em sua companhia?
MISERICÓRDIA—
Sim, convidou-me, e como meu Senhor pode ver, aceitei. Se a graça e o perdão
podem estender-se até mim, suplico que a esta vossa humilde serva lhe seja
permitido participar destas bênçãos.
Tomando-a
novamente pela mão, a introduziu carinhosamente pela porta, dizendo:
—Intercedo
em favor de todos os que acreditam em mim, quaisquer seja a forma em que
comparecem. —Então disse aos circunstantes—: Trazei alguma erva aromática e dai-a
para que se restabeleça do desmaio.
Trouxeram
um ramo de mirra e pronto ela voltou em si.
Deste
modo Cristiana, seus filhos e Misericórdia principiaram seu caminho de
peregrinação, recebidos pelo Senhor, quem lhes falou com benignidade.
—Nos
arrependemos —agregaram— dos nossos pecados, e pedimos ao nosso Senhor que nos
outorgue o perdão, informando-nos mais particularmente do que nos convém fazer.
—Concedo
o perdão —respondeu—, de palavra e de fato: de palavra, na promessa da remissão
dos pecados; de fato, na forma em que eu o consegui para vós. Recebam agora dos
meus lábios um beijo, e o resto vos será revelado.
CAPÍTULO 4
Os peregrinos são
agasalhados pelo Porteiro. Prosseguindo seu caminho, as mulheres são
incomodadas por dois vilões e oportunamente socorridas pelo Auxiliador.
Depois disto vi que o Senhor dirigia-lhes
muitas palavras consoladoras, as quais os enchiam de alegria; também os
conduziu a um terraço que havia sobre a porta.
—A mesma vista —agregou— vos será
novamente oferecida durante o caminho para vosso consolo.
Depois os deixou sozinhos durante uns
momentos numa sala de verão, onde travaram entre si a seguinte conversação:
CRISTIANA— Graças ao Senhor! Quanto
me alegro de ter entrado aqui!
MISERICÓRDIA— Bem podes te
congratular; porém eu, sobre tudo, tenho motivos fundados para pular de
alegria.
CRISTIANA— Houve um momento, enquanto
estávamos à porta, quando havia chamado e ninguém respondia, em que temi que
toda a nossa moléstia e os nossos esforços tivessem sido inúteis, especialmente
quando aquele cachorro ruim dava tais latidos.
MISERICÓRDIA— O temor assaltou meu
coração, sobre tudo quando vi que tinham recebido vocês, enquanto eu ficava
fora. "Agora", disse para mim, "cumpriu-se o que está escrito: 'Duas
mulheres estarão juntas moendo; uma será tomada, e a outra será deixada'"
[3]. Devi
esforçar-me para não gritar: "Aí de mim, que estou morta!". No
momento não me atrevi a chamar mais; porém, alçando os olhos, vi o que estava
escrito sobre a porta, e ganhei ânimo. Então me pareceu que se não chamava
outra vez morreria, e assim bati, mas não posso te dizer como, porque meu
espírito lutava entre a vida e a morte.
CRISTIANA—
Não sabes como chamaste? Pois as batidas eram tão fortes que me fizeram
estremecer; nunca em minha vida tinha ouvido semelhantes golpes; achei que
tinhas a intenção de entrar por força ou que ias 'tomar de assalto o
Reino" [4].
MISERICÓRDIA—
Aí! Quem em semelhante situação teria agido de outra forma? Já viste que a
porta havia-se fechado para mim, e que ali havia um cão raivoso. Quem, digo eu,
sendo tão tímida como eu, não teria chamado com todas as suas forças? Mas, o
que disse o Senhor a respeito de minha ousadia? Não se enfadou contra mim?
CRISTIANA—
Quando ouviu o barulho que fazias, sorriu suave e carinhosamente. Acredito que
tua importunidade o agradou bastante, pois não manifestou nenhum desagrado.
Porém me estranha muito que tenha um mastim tão feroz; de sabê-lo de antemão,
temo que não teria a coragem para aventurar-me como o fiz. Mas já estamos
dentro, e me alegro de todo coração.
MISERICÓRDIA—
Se desejas, eu lhe perguntarei, quando desça, por que tem tão feroz animal em
sua fazenda; espero que não o leve a mal.
—Ah,
sim! —disseram as crianças—, e persuade-o para que o mate, porque tememos nos
mordam quando partamos daqui.
Efetivamente,
ao descer novamente o Senhor, Misericórdia prostrou-se diante dEle, dizendo:
—Que meu
Senhor se digne aceitar o sacrifício de louvores que agora o ofereço.
—Paz a
ti; levanta —lhe respondeu.
Porém
ela continuou prostrada, agregando:
—Justo é
tu, oh Senhor, embora eu me atreva a discutir teus juízos. Por que guarda meu
Senhor em seu curral um cão tão feroz, à vista do qual mulheres e crianças como
nós fogem atemorizados pela porta?
—O cão
—disse— não é meu, e está encerrado em outra propriedade; meus peregrinos
somente ouvem seus latidos. Pertence ao Castelo que se vê lá, um pouco longe
daqui, mas pode se aproximar destes muros. Seu barulho tem espantado muitos
peregrinos sinceros. Certamente que seu dono não o tem por boa vontade para comigo,
mas ao contrário, com o objeto de impedir aos peregrinos de virem a mim, e
infundi-lhes temor para que não chamem à porta. Alguma que outra vez
escapou-se, e tem acossado e maltratado os meus amados; por enquanto eu sofro
tudo com paciência; mas eu dispenso aos meus ajuda oportuna, para que não sejam
entregues a ele e faça deles o que deseje, segundo o malévolo de sua natureza.
Porém, ainda sabendo de antemão, não teriam medo de um cão, verdade? Os que vão
mendigando de porta em porta, antes que pedir uma esmola, correm o risco dos
latidos e ainda das mordidas de um cachorro. Por que, pois, haveríeis de ter
medo de um mastim que esta em curral alheio, e cujos latidos volto em proveito
dos peregrinos?
MISERICÓRDIA—
Confesso a minha ignorância; falei do que não compreendia, reconheço que tudo o
fazes bem.
Cristiana
começou então a falar de sua viagem, e a pedir informes sobre o caminho. O
Senhor, depois de dar-lhes de comer, lavou-lhes os pés e então lhes mostrou o
caminho, assim como antes tinha feito com Cristiano. Ao começar a marcha, o
tempo favorecia-lhes, e Cristiana gozosa cantava:
Bendito
por sempre o dia
Em que a
minha marcha começou;
E
bendito seja o homem
Que a
iniciá-la me incitou.
Longos
anos transcorreram
Sem ter
vida nem ter paz;
Agora corro
quanto posso,
Tarde e
melhor que jamais.
Pranto
em gozo, medo em calma,
Mudam-se
ao começar;
Se o
princípio é tão formoso,
Mais
gentil o fim será.
Do outro
lado da cerca que resguardava a senda havia um pomar que pertencia ao amo
daquele furibundo cão antes mencionado. Algumas das árvores frutíferas estendiam
suas ramas sobre o muro, e sendo o fruto de bom aspecto, acontecia às vezes que
os viajantes as colhiam, com grande prejuízo de sua saúde. As crianças, pois,
com o instinto próprio da juventude, prendados da fruta, a colheram e começaram
a comer, apesar das repreensões de sua mãe.
—Filhos
meus —disse ela—, fazeis mal, porque aquele fruto não é nosso.
Ignorava,
porém, que pertencesse ao inimigo; de outra sorte, tivesse morrido de medo. Por
enquanto, não houve resultado algum desagradável, e os nossos peregrinos
prosseguiram sua viagem. Tinham-se distanciado já muito pouco da porta pela que
entraram, quando divisaram dois sujeitos de mal aspecto, que vinham às presas
ao seu encontro. Vendo isto as duas mulheres, cobriram-se com seus véus e
continuaram andando, com as crianças à frente. Ao se encontrarem com elas, os
homens fizeram gesto para abraçá-las.
—Atrás!
—exclamou Cristiana—. Continuem seu caminho como pessoas honestas.
Porém
esses dois, fazendo-se de surdos, desprezaram os protestos das mulheres, e
começaram a pôr-lhes a mão acima. Com isto Cristiana, acendida de ira, deu-lhes
pontapés, enquanto Misericórdia fazia o que podia para afastá-los.
—Deixai-nos
passar —gritou novamente Cristiana—. Não temos dinheiro, somos peregrinas como
vês, e para viver dependemos da caridade dos nossos amigos.
—Não
buscamos dinheiro —disse um deles—, mas viemos a dizer que sem quereis
conceder-nos o pouco que pedimos, os faremos mulheres de fortuna.
Cristiana,
que adivinhou as intenções, respondeu:
—Não vos
ouviremos, nem atenderemos as vossas razões, nem acederemos aos vossos rogos.
Temos muita pressa e não podemos nos deter; do êxito de nossa viagem depende a
vida ou a morte.
Assim
dizendo, as mulheres fizeram outro esforço para passar adiante, no entanto os
vilões as impediram.
—Não
atentamos a vossa vida —disseram—; outra coisa é o que desejamos.
CRISTIANA—
Sim, desejais nos ter em corpo e alma, pois já sei com que intenção vindes; mas
antes morreremos aqui mesmo que nos deixar cair nas redes que colocariam em
perigo nosso bem-estar eterno.
Em
seguida clamaram ambas mulheres aos gritos:
—Assassinos!
A eles! —para colocar-se sob o amparo das leis que foram estabelecidas para a
proteção da mulher. Vendo que os malvados não desistiam do intento, alçaram a
voz mais uma vez.
Não
estando ainda muito longe da porta, ouviram-se os gritos neste lugar.
Reconhecida a voz de Cristiana, acudiram a todo correr em seu socorro. Ao
chegar o Auxiliador perto dos peregrinos, encontrou às mulheres muito apuradas,
enquanto as crianças choravam ao seu lado.
—Que
vilania é essa que estais cometendo? —disse, dirigindo-se aos rufiões. Quereis
obrigar às servas do Senhor a pecar?
E tentou
aprisioná-los, mas eles fugiram, escalando a cerca e refugiando-se no horto do
proprietário do cão, de modo que o mastim foi seu protetor.
Perguntadas
as mulheres como estavam, "Bem, graças a ti, senhor", foi a resposta.
—Porém
levamos grande susto. Muito te agradecemos ter vindo em nosso auxílio; de outro
modo teríamos sido vencidas.
Depois
de breves palavras, Auxiliador lhes disse:
—Muito
me maravilhei, quando se hospedaram na porta, que, sendo débeis mulheres, não
pedísseis ao Senhor os serviços de um guia. Certamente teria Ele acedido aos
vossos rogos, e teríeis evitado estes contratempos e perigos.
CRISTIANA—
Ah! Estávamos tão prendadas das bênçãos que acabávamos de receber, que os
perigos que podiam aparecer ficaram no esquecimento. Além disso, quem podia
acreditar que tão perto do palácio do Rei se esconderam semelhantes velhacos?
Em efeito, temos feito mal em não pedir um guia; mas, sabendo o Senhor que nos
seria vantajoso, resulta estranho que não o oferecesse.
AUXILIADOR—
Não é sempre conveniente outorgas as coisas que não se pedem, para que não se
tenham em pouco; porém, quando sentimos necessidade de uma coisa, aprendemos a
apreciá-la devidamente e a nos valermos dela. Dado o caso que o meu Senhor vos
tivesse concedido um condutor, não teríeis lamentado vosso descuido em pedi-lo,
como agora tendes ocasião de fazer. Assim vedes que todas as coisas contribuem
ao vosso bem, e tendem a acautelar-vos.
CRISTIANA—Voltaremos
ao nosso Senhor para confessá-lhe a nossa indiscrição e pedi-lhe um guia?
AUXILIADOR—
Eu oferecerei a vossa confissão. Não tendes necessidade de voltar atrás, porque
não vos faltarão recursos nos lugares aonde cheguem. Em cada uma das
hospedarias que meu Senhor preparou para o alojamento de seus peregrinos,
encontra-se o necessário para escudá-los contra qualquer atentado. Contudo,
como já disse, deseja ser solicitado para agir assim. Deve ser de escasso valor
aquilo que não vale a pena de ser pedido.
Assim
dizendo, os deixou continuar sozinhos sua viagem.
MISERICÓRDIA—Este
tem sido um desengano muito rude. Figurava-me que já estávamos fora de todo
perigo, e que a tristeza não nos alcançaria mais.
CRISTIANA—
A tua inocência, irmã, pode desculpar-te muito; porém, no que a mim toca, a
minha culpa é bem maior, porquanto previ este perigo antes de sair de casa e,
ainda assim, não me precavi quando me encontrei onde podia dispor dos médios
necessários. Por isso me fiz credora de severas repreensões.
Misericórdia—
Como podias saber disto antes de marchar-te? Descobre-me este enigma.
Cristiana—
Vou dizer-te. A noite antes de partir, tendo-me deitado, tive um sonho.
Parecia-me ver dois homens semelhantes em todo a estes dois vilões, que estavam
ao pe de meu leito conspirando para arruinar-me e impedir a minha salvação. Era
quando eu estava tão exausta de dor. "O que faremos desta mulher?",
diziam, "pois dormida o mesmo que acordada pede perdão. Se lhe é permitido
continuar sua viagem, escapar-se-nos-á como o fez o seu marido". Isto
deveria ter-me acautelado, e deveria induzir-me a me precaver, quando tinha a mão
o necessário para conjurar o perigo.
MISERICÓRDIA—
Boa ocasião se nos tem proporcionado por meio deste descuido, para conhecermos
as nossas imperfeições. Nosso Senhor aproveitou também esta circunstância para
manifestar-nos as riquezas de sua graça, deparando-nos favores não solicitados
e liberando-nos bondosamente das mãos de pessoas mais poderosas do que nós.
CAPÍTULO
5
Os
peregrinos na casa de Intérprete. Os ensinos alegóricos que ali receberam: a
mente carnal; altas bênçãos imerecidas, obtidas pela fé; as vozes de Deus; a
mansidão; diversidade de dons e graças; necessidade de dar fruto; tendências
mundanas dos hipócritas.
Assim
falando, aproximaram-se os nossos caminhantes a uma casa que tinha sido
construída em beneficio dos peregrinos. Era a de Intérprete, onde Cristiano
teve tão afável recebimento. Ao chegar a porta, ouviram um grande sussurro de
vozes, e aguçando o ouvido pensaram distinguir entre outras coisas o nome de
Cristiana. Temos que advertir que tinha-as precedido o rumor de que ela e seus
filhos iam em peregrinação, e isto causava tanto mais prazer quanto que
dizia-se que a esposa de Cristiano, que até pouco tempo atrás não queria nem
sequer ouvir falar de tal coisa, era quem estava nas vésperas de chegar.
Detiveram-se imóveis, e ouviram como os da casa louvavam sua conduta, não
suspeitando que o objeto de seus elogios estivesse à porta. Por fim Cristiana
cobrou ânimo suficiente para chamar, como antes tinha feito na portinha, e
vindo a abrir uma donzela chamada Inocente, encontrou-se com as duas mulheres.
—Com
quem desejam falar? —perguntou.
CRISTIANA—
Nos disseram que este é um lugar privilegiado para peregrinos, e nós o somos;
portanto os rogamos que nos proporcionem hospedagem, porque o dia toca a fim, e
não gostaríamos avançar mais nesta noite.
INOCENTE—
A quem anunciarei?
CRISTIANA—
Meu nome é Cristiana; fui a esposa daquele peregrino que alguns anos atrás
viajou por aqui, e estes são seus quatro filhos. Esta jovem é companheira
minha, e vai também em peregrinação.
Ao ouvir
isto Inocente entrou correndo e disse:
—Quem
acham que está na porta? Pois ali estão Cristiana com seus filhos e uma
companheira sua, pedindo alojamento.
Cheios
de gozo, foram comunicar a nova ao dono da casa, quem, dirigindo-se à porta,
perguntou se era verdade que fosse a esposa de Cristiana quem chamava.
CRISTIANA—
Sim, senhor; aquela mulher tão empedernida e indiferente às penas de seu
marido, e que o deixou para que seguisse sozinho com sua viagem, sou eu; e
estes são seus quatro filhos. Mas agora venho porque estou convencida de que
este caminho é o único que conduz ao bem.
INTÉRPRETE—
Assim cumpriu-se aquilo que está escrito do homem que deixou seu filho: "Filho,
vai trabalhar hoje na vinha (...) respondeu-lhe este: Não quero; mas depois,
arrependendo-se, foi" [5].
CRISTIANA—
Assim seja, amém! Queira Deus que isto se verifique em mim, e que no fim seja
encontrada nEle em paz sem mácula e irrepreensível.
INTÉRPRETE—
Mas, por que ficas na porta? Entra, filha de Abraão. Faz pouco tempo estávamos
falando sobre ti, porque tínhamos recebido notícias de tua partida; entrai
todos —disse, e os introduziu na casa.
Depois
de um corto período de descanso, a família e servos de Intérprete apresentaram-se
aos hóspedes. A satisfação que sentiram ao ver que Cristiana tinha empreendido
semelhante carreira estava claramente desenhada em seus semblantes; acariciaram
às crianças, trataram com esmerado carinho a Misericórdia, e a todos e cada um
deram as boas-vindas à cada de seu Senhor.
Depois,
enquanto o jantar era preparado, Intérprete mostrou a eles os aparelhos alegóricos
que Cristiano tinha visto com tanto proveito. Ali, pois, viram o homem
enjaulado, o sonhador, o valoroso que abriu-se passo através de seus inimigos,
o quadro do guia fiel, junto com outras muitas coisas instrutivas.
Quando
os peregrinos haviam meditado devidamente no significado destas coisas,
Intérprete os conduziu a uma habitação na qual havia um homem que não podia
olhar senão para abaixo, tendo em mau um rastelo; ao passo que acima dele se
via um que, levando em sua mão uma coroa celestial, a oferecia a ele em troca
pelo rastelo; porém o homem, sem alçar os olhos nem prestar atenção a isso,
continuava escavando entre a palha, as farpas e o pó do chão.
CRISTIANA—
Acho que compreendo algo do significado disto. É a figura de um homem mundano,
não é verdade?
INTÉRPRETE—
Falaste bem, e seu rastelo deixa de manifesto sua mente carnal. Este que vedes
prefere se ocupar em recolher farpas e lixo antes que ouvir Aquele que o chama
desde cima, oferecendo-lhe a coroa celestial, e serve para mostrar que o céu para
alguns não passa de uma fábula, e que as coisas materiais são consideradas como
as únicas substanciais. O fato que o homem não pode olhar senão para abaixo é
para nos ensinar que as coisas terrenas, quando se apoderam do espírito do
homem, afastam seu coração de Deus.
CRISTIANA—
Seja eu liberada desse rastelo!
INTÉRPRETE—
Essa petição tem ficado deixada de lado até ser quase esquecida. Apenas um
entre dez mil profere a súplica "Não me dês riquezas". Palhas,
farpas, pó, são as coisas de grande atualidade para a maioria dos homens.
CRISTIANA
E MISERICÓRDIA (Chorando)— Ai! Sim, é verdade!
Depois
disto, Intérprete mostrou-lhes a melhor habitação que havia na casa; uma
estância belíssima. Disse-lhes que olhassem em volta deles, para ver se podiam
descobrir algo que lhes fosse de proveito. Em seguida olharam para todas as
partes, porém somente havia uma enorme aranha na parede, e não fizeram caso
dela.
—Não
vejo nada —exclamou Misericórdia; porém Cristiana calava.
Instigada
para olhar novamente, Misericórdia disse:
—Aqui
não há nada senão uma aranha feia, aferrada à parede.
—Não há
senão uma única aranha em todo este quarto espaçoso? —insistiu Intérprete.
Então as
lágrimas inundaram os olhos de Cristiana; era uma mulher de claro engenho.
—Sim,
senhor —respondeu—; aqui há mais de uma, e aranhas cujo veneno é muito mais
funesto que o daquela.
—Tens
razão —contestou Intérprete, fitando-a com agrado. Ao ouvir isto, Misericórdia
enrubesceu; os rapazes também cobriram os rostos, pois já começavam a
compreender o enigma.
INTÉRPRETE—
A aranha aferra-se com as patas (como já vedes) e está nos palácios dos reis.
Por que foi escrito isto senão para mostrar-vos que, por muito cheios que
estejais do veneno do pecado, podereis, com a mão da fé, aferrar-vos à melhor
habitação que pertence ao palácio do Rei celestial e morar nela?
CRISTIANA—
Achei que fosse uma coisa pelo estilo, mas não podia aprofundá-lo totalmente. Pensava
que fossemos como aranhas e que parecíamos feias, por luxuosa e soberba que
fosse a habitação em que nos encontrávamos; porém, não tive o pensamento de que
neste venenoso e ruim inseto havíamos de aprender a maneira de operar pela fé;
de fato, vemos que a aranha, aferrada com suas patas à parede, vive na melhor
habitação da casa. Deus não tem feito nada em vão.
Nossos
peregrinos receberam com alegria estes ensinos; todavia seus olhos se
umedeceram. Cruzaram entre eles olhares significativos, e inclinaram-se ante o
senhor Intérprete.
Este os
levou logo a outro quarto, onde havia uma galinha com seus pintinhos. Os
observaram uns momentos, vendo a um dos pintinhos dirigir-se à pia para beber,
e que cada vez que bebia, alçava os olhos para o céu.
—Vede
—disse— o que faz este pintinho, e aprendei dele a reconhecer de onde procedem
as bênçãos. Continuai olhando-os e ainda vereis algo mais.
Deveras,
repararam que a galinha chamava de quatro formas diferentes os seus pequeninos.
Tinha primeiro uma voz natural que empregava o tempo todo; segundo, um chamado
especial que ouvia-se às vezes; terceiro, um choco; e quarto, um grito de
alarme.
—Aqui
—disse Intérprete— tendes uma imagem de vosso Rei e de seus fiéis, pois ele
também opera de diferente maneira com os seus. Sua voz ordinária escuta-se
continuamente; quando oferece alguma dádiva faz ouvir um chamamento especial;
fala com tenros acentos aos que estão abrigados sob suas asas, o mesmo que a
galinha faz com seus pintinhos; acentos que se convertem num clamor para
advertir os seus quando aproxima-se o inimigo. Tenho-vos ensinado estas coisas,
porque são fáceis de compreender às mulheres e às crianças como vós.
Cristiana
manifestou desejos de ver mais, pelo que Intérprete os conduziu ao matadouro,
onde viu um açougueiro que matava uma ovelha, a qual, mui mansa e tranqüila,
recebia a morte sem oposição.
—Deveis
aprender da conduta desta ovelha —disse-lhes—, a padecer e suportar injúrias e
males sem murmurações nem queixas. Eis aqui quão tranqüilamente deixa-se matar!
Não se opõe a quanto a fazem sofrer; e vosso Rei os chama de ovelhas suas.
Ato
seguido os conduziu a sua horta, onde havia uma grande quantidade de flores.
—Já
vedes —disse—, que entre estas flores existe muita diversidade de altura, cor,
aroma e virtude; e algumas são melhores que outras: além disso, permanecem onde
o jardineiro as tem colocado, e não brigam.
Dali os
levou ao seu campo, no que havia semeado trigo e outros cereais; porém, olhando
de perto, viram que as espigas haviam sido todas cortadas, e não sobrava senão
a palha.
—Este
campo —explicou— foi adubado, arado e semeado; mas, que faremos da colheita?
—Queimam
uma parte o do resto faz-se adubo —respondeu Cristiana.
—Ah!
—agregou aquele— Vedes que o que se espera é fruto, e por falta dele é
condenado tudo a ser queimado ou calcado pelos homens. Tende cuidado que, assim
dizendo, não falheis e produzais a vossa própria condenação.
Ao
voltar de sua breve excursão campestre, Intérprete dirigiu sua atenção para um
passarinho de peito avermelhado, com uma enorme aranha no bico. Todos fixaram
nele a atenção, e enquanto Misericórdia admirava-se, Cristiana exclamou:
—Quanto
se envilece esta ave tão formosa! É uma que em plumagem e aparência é superior
a muitas de sua classe, e também parece que gosta de manter relações com o
homem; eu acreditava que se alimentasse de migalhas e outras coisas inocentes;
francamente, tem se rebaixado em minha estimação.
INTÉRPRETE—
Vedes aí nesse pássaro um emblema de certas pessoas que fazem profissão de
piedade. Em aparência são como essa ave, que canta bem, tem cores formosas e é
de aspecto gracioso. Estas pessoas fingem um grande amor para os sinceros
servos do Senhor e, sobre tudo, professam desejos de associar-se com eles e
estar sempre em sua companhia, como se pudessem alimentar-se com o manjar dos
piedosos. Alegam também que por isso freqüentam as casas dos bons e assistes aos
cultos no santuário; porém, uma vez sozinhos, podem, como este pássaro, colher
e engolir aranhas; podem trocar de alimento e "beber a iniqüidade como
água" [6].
CAPÍTULO
6
Os
peregrinos recebem outros ensinos em casa de Intérprete, onde também lhes é dispensada
hospitalidade. O banho da Santificação.
Quando
voltaram à casa, como o jantar não estava ainda servido, Cristiana rogou de
novo ao senhor Intérprete que lhes ensinasse ou dissesse outras coisas
interessantes. O bom senhor, sem dilação, principiou uma série de ditados ou
refrães sentenciosos.
—Quanto
mais gorda for a porca, maiores desejos de revolver-se no lamaçal; quanto mais
engordado o boi, mais alegremente vá ao matadouro; e quanto mais sadio o homem
robusto, mais propenso é para o mal.
As mulheres
anseiam andar bem compostas e elegantes; o formoso é estar enfeitado com o que
é de grande preço aos olhos de Deus.
É mais
fácil velar uma noite ou duas que um ano inteiro; assim também é mais fácil
começar a andar bem que perseverar até o fim.
Qualquer
capitão, vendo seu barco em perigo de tempestade, jogará primeiro ao mar o que
é de menor valor. Ninguém senão o que teme a Deus se desfaria primeiro do mais
precioso e importante.
Uma
única via de água bastará para fazer naufragar o navio, e um pecado causará a
ruína do pecador.
Que
esquece de seu amigo, usa de ingratidão para com ele; porém que esquece seu
Salvador, é impiedoso consigo mesmo.
Quem
vive em pecado e espera alcançar a boa-venturança da outra vida, é semelhante
àquele homem que semeia joio e espera encher seus celeiros de trigo ou cevada.
O homem
que deseje viver bem, que viva cada dia como se fosse seu último.
O
cochicho e a mudança de pensamentos são provas evidentes que o pecado existe no
mundo.
Sendo
assim que o mundo, ao qual Deus tem em pouco, é tão apreciado pelos homens, o
que será do céu que Deus encomenda?
Quando
nos devotamos tanto a esta vida, tão pródiga em penalidades, o que será da vida
eterna?
Todos
estão prontos a elogiar a bondade dos homens; todavia, quem aprecia devidamente
a bondade de Deus?
Rara vez
nos retiramos da mesa sem deixar viandas sobre ela; assim também há em Cristo
mais méritos e mais justiça que os que necessita o mundo inteiro.
Acabados
estes provérbios, Intérprete os levou outra vez para a horta, e mostrou-lhes
uma árvore cujo interior estava apodrecido e oco; ainda assim, crescia e
produzia folhas.
—O que
significa isto? —perguntou Misericórdia.
—A esta
árvore —contestou—, cujo exterior é formoso enquanto o interior está podre,
podem comparar-se muitos dos que se encontram no horto de Deus: com a boca o
louvam e engrandecem, porém não desejam fazer nada por Ele; são de formosa
aparência, mas seus corações não prestam senão para ser alimento para o
braseiro de Satanás.
Foi
anunciado o jantar, e tendo dado graças, sentaram-se todos a comer. Intérprete,
como era seu costume, entreteve seus hóspedes com música durante a comida. Além
dos instrumentistas, havia um que com vos timbrada cantou:
Só o
Senhor me amparara;
Ele me
sustenta e me cuida;
Enquanto
Ele assim me guarde,
Nada a
minh'alma precisa.
Quando
cessaram a música e o canto, Intérprete perguntou a Cristiana o que a havia
impelido à vida de peregrinação.
CRISTIANA—
Em primeiro lugar, afligia-me a causa da perda de meu marido: isto não era
senão o resultado de afetos naturais. Depois acudiram em tropel à minha memória
as aflições e a peregrinação de meu esposo, junto com a minha ruim e miserável
conduta para com ele. Em seguida apoderou-se de mim tal convicção de meu pecado
que por pouca não me causa a morte; porém, afortunadamente sonhei ver a
bem-aventurança de meu esposo, enquanto recebi uma carta de convite do seu Rei.
A carta e o sonho produziram tão profunda impressão em meu ânimo, que me
obrigaram a dar este passo.
INTÉRPRETE—
Mas não encontraste nenhuma oposição antes de partir?
CRISTIANA—
Sim, senhor; uma vizinha minha, uma tal de Temerosa, chamou-me de louca e
qualificou de desesperada a empresa que tinha projetado. Fez tudo o possível
para me desanimar, lembrando-me as penas e fadigas que sofreu meu marido;
contudo seus argumentos não me convenceram. O que sim turbou-me foi um sonho
que tive, de dois mal encarados que pareciam montar armadilhas para malograr
minha empresa; ainda isto tem embargado me espírito, e me faz desconfiar de
quanto transeunte me encontro, e não são infundados meus temores, pois
direi-vos em confiança que apenas saídas da porta para cá ambas formos tão
ferozmente acometidas por dois canalhas, muito parecidos aos de meu sonho, que
nos vimos obrigadas a dar de vozes pedindo socorro.
INTÉRPRETE—
O princípio foi bom; a tua herança será bendita em grande maneira. E a ti
—disse, dirigindo-se a Misericórdia—, o que te induziu a via para cá, amada
minha? Não tenhas medo —agregou, ao vê-la corada e trêmula—; podes falar com
franqueza.
MISERICÓRDIA—
Minha curta experiência impõe-me silêncio, e ao mesmo tempo infunde-me o temor
de não poder alcançar a glória. Não posso falar de visões e sonhos como minha
amiga; nem também não sei o que é lamentar ter recusado o conselho de bons
parentes.
INTÉRPRETE—O
que pois, levou-te a semelhante determinação?
MISERICÓRDIA—
Quando ela arrumava-se para sair do povo, eu e outra vizinha fomos fazê-lhe uma
visita; perguntamos que fazia, e nos manifestou que a haviam chamado para
seguir seu marido, e que o tinha visto num sonho num belíssimo lugar, rodeado
de seres imortais, suas fontes cingidas de uma coroa, uma harpa em suas mãos,
cantando louvores ao seu Deus, e que comia e bebia em presença do Rei. Ao ouvir
tais palavras, meu coração ardia em mim, e disse em meu interior: "Se isto
for verdade, deixarei pai, mãe e cidade nativa e, se me for permitido,
acompanharei a Cristiana"; pois via que era sumamente perigoso permanecer
em nossa cidade. Porém, sai com o coração oprimido, não porque não tivesse
desejos de partir, senão porque tantos parentes meus ficavam lá. E agora,
eis-me aqui, ansiando dirigir-me com Cristiana à Cidade Celestial.
Intérprete—
Começastes bem, por quanto deste crédito à verdade. Tu és como Rute, quem pelo
amor que sentia por Noemi e pelo Senhor seu Deus, deixou seu pai, sua mãe e seu
próprio país para ir morar em meio de gente que não conhecia. "O SENHOR
retribua o teu feito; e te seja concedido pleno galardão da parte do SENHOR
Deus de Israel, sob cujas asas te vieste abrigar" [7].
Finalizado
o jantar, luziram-se os preparativos para o repouso noturno. Às mulheres foram
proporcionadas habitações, e as crianças ocuparam juntas outro quarto que lhes
foi destinado. Misericórdia, porém, estava tão jubilosa, que não pôde conciliar
o sonho: suas dúvidas e temores tinham desaparecido, e permaneceu a noite toda
abençoando e louvando o Deus que havia lhe outorgado tão distintos favores.
Levantaram-se
ao amanhecer, e dispunham-se para retomar a marcha, mas Intérprete quis que
esperassem um breve tempo, porque disse-lhes:
—Deveis
sair daqui bem preparados.
Por
ordem sua a donzela Inocente, quem tinha aberto a porta o dia anterior, os
conduziu à casa de banhos situada no jardim, a fim de eliminar a poeira do
caminho. Ali, então, lavaram-se todos, saindo logo não só limpos e refrescados,
mas também vivificados e fortalecidos em todas as junturas do corpo; de modo
que voltaram à casa com muita melhor aparência que quando saíram dela.
—"Formosos
como a lua"— exclamou Intérprete ao vê-los voltar. Então pediu o selo com
que costumavam selarem os que eram purificados, e imprimiu um sinal pelo qual
podiam ser conhecidos em todas partes. O selo era a lembrança da Páscoa que
comeram os filhos de Israel ao sair de Egito. E a marca foi-lhes colocada entre
os olhos, a qual realçava muito sua formosura e a gravidade de seus rostos,
deixando-os parecidos com anjos.
Em
seguida, disse Intérprete à donzela que os assistia que trouxesse do vestiário
roupas apropriadas para todos. assim, pois, foi e trouxe vestes brancas, de fino
linho, limpos e brilhantes. Uma vez ataviadas as mulheres, parecia que cada um
infundia medo à outra, porque não podia ver em si mesma a glória que
resplandecia na outra. Portanto, começavam a considerar-se uma inferior a
outra.
—Tu és
mais formosa que eu —dizia uma.
—Tu é
mais bela que eu —respondia a outra.
As
crianças igualmente ficaram surpreendidas ao ver a transformação que tinha se
efetuado.
Chegado
já o momento da despedida, Intérprete chamou um de seus servos, um tal de Bom
Coração, ordenando-lhe que, devidamente armado, conduzisse as peregrinas ao
Palácio Formoso, onde iriam parar. Este colheu, então, suas armas para ir
diante deles, e todos se puseram em marcha, sendo despedidos com muitas
expressões de amizade e desejos de uma próspera viagem. Ao ver-se novamente a
caminho, prorromperam em exclamações de júbilo, cantando:
Neste
lugar, nossa segunda etapa,
Nos têm
mostrado coisas de proveito,
Que em
idades passadas para muitos ocultos estiveram.
Aquele
escavador, a grande aranha,
As
galinhas e os pintinhos são exemplos
De
lições que deixaram nossas mentes com lembranças.
Açougueiro,
jardim, campo semeado,
Avezinha
que come sujo inseto,
E árvore
de tronco oco com suas folhas,
São
belos argumentos,
Que
motivam-me a orar, velando sempre,
A lutar
com propósito sincero,
E a
suportar minha cruz a cada dia,
Ao meu
Senhor servindo.
CAPÍTULO
7
Cristiana
e seus companheiros, acompanhados de Bom Coração, chegam à Cruz: conversação
que ali tiveram a respeito da justificação. Vêem Simples, Preguiça e Presunção
pendurados de uma forca para escarmento dos malfeitores. Chegam ao pe do monte
Dificuldade.
Depois
disto, vi em meu sonho que nossas peregrinas, seguindo a Bom Coração, chegaram
ao sitio, onde a carga de Cristiano tinha deslizado de suas costas e rodado,
caindo no sepulcro. Ali se detiveram para abençoar a Deus.
—Agora
—disse Cristiana— me vem à memória o que foi-nos dito na porta, ou seja, que
receberíamos o perdão por palavra e obra; por palavra, isto é, pela promessa;
por obra, isto é, pela forma como nos foi entregue. Eu sei algo do que é a
promessa; e você, senhor Bom Coração, saberá sem dúvida o que é receber o
perdão por obra; portanto, explique-nos se é de sua vontade.
BOM
CORAÇÃO— O perdão por obra é o perdão obtido por um em favor de outro que tem
grande necessidade dele. O perdão que vós tendes alcançado vos foi procurado
por outro, isto é, por Aquele que vos deu entrada pela porta; isto foi obtido
de forma dupla: fez justiça com que cobrir-vos e derramou seu sangue para
limpar-vos.
CRISTIANA—
Mas se desprende-se de sua justiça própria, o que sobrará para ele mesmo?
BOM
CORAÇÃO— Tem mais justiça da que vocês precisam. Este de quem falo não tem
igual. Possui numa pessoa duas naturezas, que facilmente se distinguem, mas não
poder separar-se. A cada uma destas naturezas pertence uma justiça que lhe é
essencial. Por conseguinte, não participamos nem de uma nem de outra justiça,
no sentido de sermos revestidos dela para viver pela mesma. Além disso, ele
possui uma justiça em virtude da união das duas naturezas, que não é nem a
justiça de sua deidade como distinta da humanidade, nem a de sua humanidade
como diferente de sua deidade; senão uma justiça própria da união destas duas
naturezas, e que pode dizer-se que seja essencial a sua preparação por Deus
para o oficio mediatório que lhe foi confiado. Não poderia desprender-se da
primeira sem deixar de ser Deus; nem da segunda sem macular sua humanidade, nem
da terceira sem abandonar aquela perfeição que o habilita para o ofício de
Mediador. Possui, pois, uma outra justiça, que consiste na obediência a uma
vontade revelada, e desta reviste os pecadores e com ela recobre seus delitos.
Pelo qual diz: "Porque, assim como pela desobediência de um só homem
muitos foram constituídos pecadores, assim também pela obediência de um muitos
serão constituídos justos" [8].
CRISTIANA—
E as outras justiças, não nos são de nenhuma utilidade?
BOM
CORAÇÃO— Sim, o são; pois embora essenciais a sua natureza e obra e
incomunicáveis para outro, em virtude delas a justiça que nos justifica é
eficaz para isso. A justiça que é própria de sua deidade dá virtude a sua
obediência; a de sua humanidade faz que sua obediência seja capaz de
justificar; e a que é própria da união destas duas naturezas, para o desempenho
de seu oficio, autoriza aquela para a obra para a qual foi ordenada.
Aqui,
pois, temos uma justiça, da qual Cristo, como Deus, não tem necessidade por
quanto é Deus sem ela; da qual Cristo, como homem, não tem necessidade por
quanto é homem perfeito sem ela; e da qual Cristo, como Deus-Homem não tem
necessidade por quanto o é perfeitamente sem ela; por conseguinte, pode
desprender-se dela e, já que a regala, chama-se "o dom de justiça".
Esta justiça, já que Cristo sujeitou-se à lei, deve dar-se de presente, porque
a lei obriga não só a realizar o que é justo, senão também a praticar a
caridade. segundo a lei deve, se possui duas vestes, dar uma a quem não tem
nenhuma. Agora bem, nosso Senhor, de fato, tem duas vestes, uma para Ele e
outra de sobra; portanto, gratuitamente proporciona uma delas aos que não têm
nenhuma: assim é que recebeis o perdão por fatos ou, em outras palavras, pela
obra de outra. Vosso Senhor Jesus Cristo é quem operou e concede o resultado de
sua obra ao pobre mendigo que o suplica a Ele.
Também,
a fim que se receba o perdão por obra, algo deve pagar-se a Deus como preço
dele, ao tempo que deve preparar-se algo com que cobrir-nos. O pecado nos
sujeitou à justa condenação de uma justa lei; e desta maldição podemos ser
liberados por meio da redenção, tendo sido pago um preço pelo mal que
cometemos, cujo valor é o sangue de vosso Senhor, quem se colocou em nosso
lugar e padeceu a morte que teríeis merecido por vossos pecados. Assim vos
redimiu de vossas transgressões com seu sangue, e cobriu de justiça vossas almas
maculadas e deformes; por amor do que Deus se digna passar por alto vossas
iniqüidades, e não vos condenará quando venha julgar o mundo.
CRISTIANA—
Quão formoso é isto! Agora vejo que havia algo que aprender de sermos perdoados
por palavra e por obra. Querida Misericórdia, procuremos tê-lo sempre presente;
e vós, filhos meus, lembrai-vos destas verdades. Certamente foi isto o que fez
cair a carga de meu bom Cristiano, e lhe fez dar três pulos de alegria.
BOM
CORAÇÃO— Sim, o compreender isto foi o que desamarrou aquelas ataduras que não
podiam romper-se de outra forma; e foi para dar-lhe uma prova da virtude de
semelhante crença que lhe foi permitido levar sua carga até a cruz.
CRISTIANA—
Já me imaginava; pois embora antes tivesse o coração alegre e gozoso, agora
sinto que a minha alegria aumentou de um modo incrível. O pouco que até agora
senti basta para me convencer de que, de encontrar-se aqui o homem mais
carregado e abrumado do mundo, vindo o que eu vejo e acreditando no que eu
creio, seu coração pularia de alegria.
BOM
CORAÇÃO— A visão e a consideração destas coisas não só nos traz consolo e
alívio, senão que gera em nós um amor mais profundo; pois quem, reparando em
ter alcançado o perdão da forma que descrevi, pode menos que se comover e
sentir um amor vivo e arrebatador àquele que o proporcionou?
CRISTIANA—
É verdade; meu coração está traspassado de dor ao pensar que Ele derramou seu
sangue por mim. Oh, Salvador amante! Oh, Cristo bendito! Tu mereces possuir-me,
pois me compraste; mereces possuir-me inteiramente, porque pagaste dez mil
vezes a mais do que valho. Não é de se estranhar que isto fizesse a meu marido
derramar-se em lágrimas e seguir tão ligeiro seu caminho; estou segura de como
desejava ter-me ao seu lado; mas, vil pecadora como era, o deixei vir sozinho.
Oh, Misericórdia, oxalá que teus pais estivessem aqui! Sim, e a senhora
Temerosa também, e ainda a senhora Sensualidade; sem dúvida alguma, seus
corações seria comovidos, e nem os temores de aquela nem as concupiscências
desta poderiam persuadi-las de voltar outra vez as costas a este caminho.
BOM
CORAÇÃO— Agora falas a impulsos de teus afetos. Estarás sempre tão fervorosa
como agora? Sabes que nem todos os que viram padecer a Jesus sentiram estas
impressões? Alguns dos que presenciaram sua morte e viram correr seu sangue,
longe de comover-se, zombaram dEle, e em vez de converter-se em seus
discípulos, endureceram seus corações contra Ele. Estas emoções que sentis,
filhos, resultam de uma graça especial que vos é concedida. Lembrai-vos que vos
foi dito que a galinha, ao chamar de sua maneira usual, não oferece comida aos
seus filhinhos.
Durante
esta conversação, os peregrinos haviam avançado no caminho, e pronto os vi
chegar no lugar onde Cristiano havia encontrado, entregues a profundo sono, a
Simples, Preguiça e Presunção; mas agora estes três estavam pendurados de
ferros a alguns passos da senda.
—Quem
são aqueles três homens? —perguntou Misericórdia ao guia—. Por que estão ali
pendurados da forca?
BOM
CORAÇÃO— Aqueles eram homens de péssimo caráter. Não queriam ser peregrinos e
estorvavam a quantos podiam; amavam a preguiça e a loucura, e tentavam
infeccionar com os mesmos vícios os outros, ensinando-lhes a presumir que a
final de contas alcançariam a felicidade o mesmo que os diligentes. Quando
Cristiano passou por aqui, dormiam; agora vedes que foram enforcados, para
escarmento dos outros.
MISERICÓRDIA—
Acaso lograram converter alguns de suas opiniões?
BOM
CORAÇÃO— De fato, fizeram descaminhar várias pessoas, entre as quais havia um
tal de Passo-Lento, junto com um Curto-de-Respiração, um Pouco-Ânimo, um
Desejo-de-Luxúria, um Cérebro-Sonolento e uma jovem chamada Lerda. A esses
conseguiram desviá-los e convertê-los como eles mesmos. Além disso falaram mal
de vosso Senhor, dizendo que era cruel e exigente, desacreditaram a boa terra,
fazendo crer que não era para nada tão boa como se dava a entender; e não
contentes com isso, se deram à tarefa de escarnecer os servos do Senhor, e
qualificar os melhores dentre eles de entremetidos e intrigantes; ao pão de
Deus o chamavam de palha; os gozos dos seus, ilusões e quimeras; e o esforço e
as fadigas dos peregrinos, coisas inúteis.
CRISTIANA—
Sendo tão maus esses sujeitos, eu por minha parte não lamentarei sua sorte. Não
receberam senão o que mereciam, e parece-me muito conveniente que estejam ali
enforcados tão perto do caminho, onde todos possam vê-los e escarmentar. Mas,
não teria sido oportuno que fosse gravada aqui uma prancha de metal o relato de
seus crimes, e se colocasse aqui mesmo onde realizaram o dano, a fim de que
servisse de admoestação para outros malvados?
BOM
CORAÇÃO— Efetivamente, assim foi feito, como verás aproximado-te mais ao muro.
MISERICÓRDIA—
Não, não; que fiquem pendurados, que pereçam seus nomes, e que seus crimes
sejam para sempre testemunho contra eles. O considero como um favor especial
que tenham sido enforcados antes que chegássemos aqui. Quem sabe o que tivessem
podido fazer a pobres mulheres como nós? —Depois prosseguiu dizendo—:Ficai ali
por sinal e temor do mesmo fim para todo aquele que não seja amigo dos
peregrinos. Guarda-te, alma minha, de quantos opõem-se à santidade.
Pouco
depois chegaram ao pe do monte Dificuldade, e seu bom amigo Bom Coração
aproveitou a ocasião para explicá-lhes o que aí havia sucedido quando Cristiano
passou pelo mesmo lugar. Os conduziu primeiro à fonte.
—Eis
aqui —disse— a fonte na qual Cristiano bebeu antes de subir a ladeira; a água
então era boa e cristalina, mas agora está enlameada e turva pelos pés de
certas pessoas que não querem que os peregrinos acalmem aqui sua sede. Porém
ainda servirá a água se for colocada num cântaro limpo; então o lodo cai no
fundo, e a água sai transparente.
Isto,
pois, foi o que Cristiana e seus companheiros viram-se obrigados a fazer. A
tiraram numa caçarola, e quando o barro depositou-se no fundo, saciaram-se com
a água pura.
Depois
disto ensinou-lhes o guia dois atalhos ao pe da colina, onde Formalista e
Hipocrisia se perderam.
—Estas
sendas —disse— são perigosas. Dois homens perderam a vida nelas, quando
Cristiano passou por ali, e a pesar que desde então obstruíram o passo com
postes, correntes e um barranco, ainda assim alguns preferem arriscar-se por
elas antes de tomar-se a moléstia de subir esta ladeira.
CRISTIANA—"O
caminho dos prevaricadores é duro". O maravilhoso é como acertam a entrar
em tais caminhos sem romper-se a cerviz.
BOM
CORAÇÃO— Ainda assim, aventuram-se; e se alguns dos servos do Rei os vêem, e os
chamam para adverti-lhes que andam por maus e perigosos caminhos, respondem com
zombarias e afirmam: "A palavra que nos falaste em nome do Senhor não
ouvimos". Se olhais atentamente, vereis que tem se tomado bastantes
precauções para evitar o trânsito por tais atalhos; além daqueles postes, o
barranco e a corrente, foi fechado o passo com uma sebe; ainda assim,
empenham-se em passar.
CRISTIANA—
São ociosos; não querem incomodar-se, e o caminhar colina acima resulta-lhes
fadigoso. Assim cumpre-se o que foi escrito deles: "O caminho do
preguiçoso é como a sebe de espinhos" [9].ainda assim,
preferem andar numa armadilha a subir este morro e seguir o que resta do
caminho e que conduz ao céu.
CAPÍTULO
8
Os
peregrinos sobem pelo monte Dificuldade. Descansam no pavilhão. Encontram-se
com o gigante Grima, o qual é morto por Bom Coração. Chegam ao palácio chamado
Formoso, onde o guia os deixa.
Depois
destas observações, retomaram novamente a marcha, acometendo a subida da
ladeira. Em curto tempo, Cristiana começou a cansar-se e exclamou:
—Quão
penosa é esta ladeira! Não é estranho que os que amam mais a comodidade que o
bem de suas almas escolham com preferência um caminho menos áspero.
—Deverei
sentar um pouco —disse Misericórdia, enquanto o menor dos rapazes começou a
chorar.
—Vamos,
ânimo! —exclamou Bom Coração— Não vos senteis aqui, que um pouco mais acima
está o pavilhão do Rei.
Assim
dizendo, tomou da mão a criança e o conduziu lá.
Ao
chegarem no lugar de descanso, de boa vontade sentaram, pois todos estavam
muito acalorados e suados.
—Quão
agradável é o descanso para os que trabalham! —disse Misericórdia— E quão bom é
o Rei dos peregrinos por tê-los provido destes lugares de descanso! Muito me
tinham falado deste pavilhão, mas esta é a primeira vez que o vejo. Cuidado de
não adormecer-nos aqui pois, segundo me disseram, esse sono custou caro ao pobre
Cristiano.
—Vamos,
filhos —disse Bom Coração, dirigindo-se aos rapazes—, como estais? O que acham
agora de sair em peregrinação?
—Senhor
—disse o menor—, pouco faltou para que desanimasse por completo; porém dou-lhe
as graças para ter-me ajudado e infundido o valor necessário. Agora me lembro
do que a minha mãe dizia: que o ir para o céu é o mesmo que subir uma escada,
enquanto que o caminho do inferno vai morro abaixo. Mas prefiro subir a escada
para a vida, que descer a pendente para a morte.
MISERICÓRDIA—
Mas diz o ditado que se avança mais depressa pendente abaixo.
Respondeu-lhe
Jaime (que assim se chamava o menor)— Dia virá, em meu conceito, que o caminhar
ladeira abaixo será o mais penoso.
—Bravo!
—exclamou o guia— Muito bem respondeste.
Misericórdia
sorriu, enquanto o menino corava.
—Vamos
—disse Cristiana—, podereis comer um bocado saboroso enquanto estais
descansando. Tenho aqui algumas romãs que me deu o senhor Intérprete ao sair,
junto com uma colméia de mel e uma garrafa de vinho; e como disse quando empreendemos
a viagem, tu, Misericórdia, participarás de todo quanto eu tenha, porque de tão
boa vontade uniste tua sorte à minha. E você (dirigindo-se ao condutor), quer
nos acompanhar neste refresco?

—Obrigado
—respondeu ele—; vós estais de viagem, e eu pronto voltarei a casa, onde como
dos mesmos manjares todos os dias. Bom apetite.
Quando
acabaram de comer e beber, e tiveram repousado um pouco em agradável
conversação, Bom Coração disse-lhes que seria prudente retomar o caminho, dada
a hora avançada do dia. Ao ponto levantaram-se para partir, marchando na frente
os jovens. Tendo dado poços passos, Cristiana percebeu a falta da garrafa de
vinho, e enviou o menor em busca dela.
—Parece-me
—disse Misericórdia— que este pavilhão deixa as pessoas distraídas; aqui
Cristiano perdeu seu diploma, e aqui também Cristiana esqueceu sua garrafa. De
onde provém isto?
—Isto
—disse o guia— deve atribuir-se ao sono ou ao descuido. Alguns dormem quando
deveriam estar acordados; outros se entregam ao descuido quando deveriam aguçar
a memória, e isto é o por que amiúde acontece que nos lugares destinados ao
descanso os peregrinos sofrem perdas. Na hora de seu maior gozo é completamente
necessário que vigiem sobre si mesmos e se lembrem do que receberam; porém por falta
disto repetidas vezes acontece que seu gozo acaba em lágrimas, e o resplendor
do dia perde-se detrás das espessas nuvens.
Ao
chegar no lugar onde Desconfiança e Temeroso haviam saído ao encontro de
Cristiano para dissuadi-lo de avançar, por temor aos leões, perceberam frente
ao caminho uma espécie de andaime com um letreiro na frente, no qual
explicava-se o motivo da construção de semelhante tablado, com os seguintes
versos:
Cuide,
quem isto leia,
De seu
coração e língua;
Se não,
sofrerá, como outros,
De seu
pecado a pena.
Debaixo
lia-se a seguinte inscrição: "Este andaime foi levantado para castigo dos
que, por temor a Desconfiança, não se atrevem a prosseguir seu caminho. Sobre
este assoalho a Desconfiança e a Temeroso foi-lhes furada a língua com um ferro
candente, por terem tentado impedir que Cristiano seguisse sua viagem".
—Isto
—observou Misericórdia— parece-se muito ao ditado do Amado: "De que te
aproveitará a língua enganosa? É como as setas do valente, agudas com brasas de
faia".
Não
demoraram muito em chegar à vista dos leões. Bom Coração era um homem forte e,
portanto, não tinha medo de um leão; porém quando chegaram perto das feras, as
crianças, que iam à frente, de boa vontade refugiaram-se detrás dos outros. O
guia, ao ver esta retirada, não conseguiu reprimir um sorriso.
—Como é
isso, filhos meus? —exclamou— Gostais de ir à frente enquanto não se aviste o
perigo e colocar-vos detrás tão pronto como aparecem os leões?
Avançaram
todos, e Bom Coração desembainhou sua espada com intenção de abrir passo aos
seus patrocinados, a despeito dos leões. Naquele momento apareceu um que, pelo
visto, tinha tomado sobre si o cargo de apoiar os leões.
—Qual o
motivo pelo que vindes? —resmungou esse, que era da raça dos gigantes e se
chamava Grima o Sanguinário, por quanto costumava matar os peregrinos.
BOM
CORAÇÃO— Estas mulheres e crianças vão de peregrinação, e este é o caminho por onde
devem passar, e passarão a pesar de ti e dos leões.
GRIMA—
Mentes; nem este é teu caminho, nem passarão. Venho com o objeto de opor-me a
isso, e com essa intenção apoiarei os leões.
A
verdade era que, a causa da feroz atitude dos leões e do aspecto torvo daquele
que os patrocinava, o caminho havia ficado desde algum tempo quase abandonado,
e a grama o cobria em grande parte.
Vindo
isto Cristiana alçou a voz dizendo:
—Ainda
que os caminhos tenham ficado desertos, e hajam obrigado os viajantes a andar
por atalhos e sendas extraviadas, não mais será assim, pois "eu me
levantei como mãe de Israel".
Então
jurou Grima pelos leões, que seria assim como ele tinha falado, e mandou-lhes
que se afastassem do caminho, pois por ali não passariam. Porém o guia o atacou
com tão forte empurrão de sua espada, que o obrigou a retroceder.
GRIMA—
Matar-me-ás em meu próprio território?
BOM CORAÇÃO—
Estamos no caminho do Rei, e nele colocastes teus leões; mas estas mulheres e
crianças, embora fracos, seguirão por ele a despeito de tudo.
Assim
dizendo, deu-lhe ao gigante um terrível golpe que o fez cambalear e cair de
joelhos. Com o mesmo talho tinha rompido também o elmo, e com o seguinte
cortou-lhe o braço. Isto fez que o gigante lançasse tão espantosos bramidos que
sua voz atemorizou às mulheres; porém, não deixaram de alegrar-se ao vê-lo
revolver-se no chão. Entretanto, os leões, encadeados, não podiam por si mesmos
fazer nada. Uma vez morto o velho Grima, Bom Coração disse aos peregrinos.
—Vinde,
segui-me, e dano nenhum recebereis de parte dos leões.
O
seguiram, pois, e passaram sem dano, ainda que, ao se acharem de frente a eles,
as mulheres tremiam e os meninos tinham caras de mortos.
Os
caminhantes podiam divisar a casinha do porteiro. Em vista do perigoso daquele
caminho depois do anoitecer, estavam desejosos de chegar e, apertando o passo,
não demoraram e encontrar-se diante da porta. Em resposta à chamada do guia, o
porteiro perguntou:
—Quem
vai?
Tão
pronto como aquele falou: "Sou eu", desceu para abrir, pois Bom
Coração havia passado muitas vezes por ali conduzindo peregrinos. Ao abrir a
porta, não vendo senão o guia, por estarem os outros detrás, disse:
—Como é
isto, Bom Coração? O que te traz por aqui nesta noite, a tais horas?
—Acompanhei
—disse— a alguns peregrinos a esta casa, onde por ordem de meu Senhor devem
alojar-se. Teríamos chegado mais cedo, se não tivesse sido porque o gigante que
costumava apoiar os leões se opus a nós; mas depois de grande combate o deixei
morto, e trouxe para cá os peregrinos em segurança.
PORTEIRO—
Desejas entrar e ficar até a manhã?
BOM
CORAÇÃO— Obrigado, não, voltarei logo ao meu Senhor.
CRISTIANA—
Oh, senhor! Não sei como consentir em que você nos abandone. Tem sido tão fiel
e carinhoso! Com tanta valentia tem lutado em nosso favor, com tão boa vontade
nos aconselhou, que nunca esquecerei de seus favores.
MISERICÓRDIA—
Tomara que pudéssemos ter sua companhia até a fim de nossa viagem! Como
poderemos nós, débeis mulheres, perseverar num caminho tão cheio de perigos
como este, sem um amigo e protetor?
Jaime, o
menor dos rapazes, também agregou sua súplica à dos outros:
—Senhor
—disse—, rogo-lhe que se deixe persuadir, e nos acompanhe e ajude, porque somos
tão fracos, e o caminho é tão perigoso!
BOM
CORAÇÃO— Estou às ordens de meu Senhor. Se dispõe que seja vosso guia até o
termo da viagem, de boa vontade os servirei. Mas eis aqui a falta que
cometestes num princípio, porque quando me disse que os acompanhasse até aqui,
devereis ter-lhe rogado me permitisse acompanhar-vos até o fim, e certamente
teria acedido a vossa petição. Por enquanto, pois, devo retirar-me; assim
então, boa Cristiana, Misericórdia, e meus queridos filhos, adeus.
CAPÍTULO
9
Os
peregrinos recebem afável tratamento no palácio Formoso. Misericórdia tem um
sonho promissório. Os rapazes são catequizados por Prudência.
Depois o
porteiro, cujo nome era Vigia, interrogou Cristiana acerca de seu país e de sua
parentela.
—Sou da
cidade da Destruição —disse ela—; sou viúva, e meu marido foi Cristiano, o
peregrino.
—Em
verdade? —exclamou o porteiro— Ele era teu marido?
—Sim
—disse—, e estes são seu filhos; e esta —agregou, indicando Misericórdia— é
vizinha do mesmo povo.
Em
seguida o porteiro fez soar a campainha, como em tais ocasiões costumava fazer,
e chegou-se à porta uma das donzelas, chamada Humildade. A ela falou o
porteiro:
—Vai e
anuncia que chegaram a viúva e filhos de Cristiano.
Assim ela
fez, e grande foi o gozo que sentiram os da casa ao ouvir semelhantes notícias.
Então
vieram apressadamente à portaria, onde ainda estavam os viajantes, e as
donzelas os convidaram afetuosamente a entrar. Cristiana e seus companheiros,
seguindo-os, foram introduzidos numa espaçosa sala, e convidados a sentar-se.
Logo mandaram chamar às principais da casa, para receber e dar as boas-vindas
aos hóspedes. Entrando elas e tendo-lhes sido explicado quem eram os
peregrinos, saudaram a todos com um ósculo, dizendo:
—Bem-vindos
sejais, vasos da graça de Deus; bem-vindos a nós, vossas amigas.
Sendo a
hora bastante avançada, e devido a que os viajantes estavam cansados do
caminho, e desfalecidos pelo combate e a visão dos terríveis leões, pediram
permissão para retirar-se quanto antes para descansar.
—Ainda
não —disseram os da família—; primeiro devereis tomar um ligeiro refrigério.
Pois
havia preparado um cordeiro com o costumeiro molho, por quanto o porteiro havia
recebido aviso de sua chegada, e o havia participado aos da casa. Depois do
jantar uniram suas vozes em oração, as que terminaram num salmo; e depois,
chegando a hora de descansar, as mulheres pediram permissão para ocupar a mesma
habitação que tinha sido destinada a Cristiano. Ali, pois, se deitaram, enquanto
repousavam de sus fadigas, e Cristiana e Misericórdia dialogaram da seguinte
forma:
CRISTIANA—
Quando meu marido empreendeu esta carreira, estava eu longe de pensar que um
dia o seguiria.
MISERICÓRDIA—
E que ocuparias a mesma habitação e repousarias sobre o mesmo leito, como na
atualidade acontece.
CRISTIANA—
Nem muito menos sonhava ver seu rosto, nem adorar o Senhor nosso Rei juntamente
como ele, como agora tenho a esperança de fazer.
MISERICÓRDIA—Escuta:
não ouves um ruído?
CRISTIANA—
Sim; parece o som de instrumentos musicais que tocam, gozosos de ver-nos aqui.
MISERICÓRDIA—
Maravilhoso! Há música na casa, música em nossos corações e música no céu pelo
gozo que nossa chegada causou.
Depois
de um tempo de conversação, entregaram-se ao sono. Na manhã seguinte, ao
acordarem, Cristiana disse a sua companheira:
—O que
era que te fazia rir em teu sonho esta noite? Achei que sonhavas.
MISERICÓRDIA—
Sim, é verdade; e efetivamente, era um belo sonho, mas, estás segura que ri?
CRISTIANA—
Sim, riste bastante forte: queres me contar o sonho?
MISERICÓRDIA—Sonhei
que estava sentada sozinha num lugar afastado, lamentando a dureza de meu
coração. Não passou muito tempo, quando muita gente começou a agrupar-se ao meu
redor para ver-me e ouvir o que eu dizia. Ouvindo-me queixar-me do empedernido
de meu coração, zombaram de mim: uns me qualificavam de maluca, outros
começaram a me empurrar de um lado para outro. Naquele trance fechei os olhos e
vi um ser resplandecente que voava em minha direção. Chegando até onde eu estava,
perguntou-me: "Misericórdia, o que tens?". Ouvida a minha lamentação,
disse-me: "A paz seja contigo". Enxugou as minhas lágrimas, vestiu-me
de roupas bordadas de ouro e prata, enfeitou-me de custosas jóias, e colocou em
minha cabeça uma soberba coroa. Logo, tomando-me da mão, disse:
"Segue-me". Subimos juntos até que chegamos numa porta de ouro.
Chamou, e quando abriram, entramos. O segui até um trono em que havia um que me
deu as boas-vindas. O lugar era resplandecente e brilhava como as estrelas ou, melhor
falando, como o sol, e ali acreditei ver teu marido. Então acordei. Então, eu
ri?
CRISTIANA—
E tanto, e tinhas razão, ao te ver tão favoravelmente acolhida. Acho que podes
considerar o sonho como um bom augúrio, e que assim como a primeira parte começou
a verificar-se, também receberás o cumprimento do resto. "Pois Deus
fala de um modo, e ainda de outro se o homem não lhe atende. Em sonho ou em
visão de noite, quando cai sono profundo sobre os homens, quando adormecem na
cama" [10].
Não é necessário que sempre estejamos acordados, para poder falar com Deus.
pode nos visitar ainda quando estamos entregues ao sono. Muitas vezes acontece
que o coração vela enquanto dormimos, então Deus pode falar-nos por meio de
palavras, provérbios, sinais ou similares, o mesmo que se estivéssemos
acordados.
MISERICÓRDIA—
Em todo caso me alegro de ter tido este sonho, e espero em breve vê-lo
cumprido, e então rirei de novo.
CRISTIANA—
Parece-me que já é hora de levantar-nos, para tomar conhecimento do que convém
fazer.
MISERICÓRDIA—
Por pouco que nos instem a permanecermos mais tempo aqui, aceitemos seu
convite. Estou tanto mais disposta a ficar, quanto que desejaria conhecer mais
de perto estas donzelas. Em meu conceito, Prudência, Piedade e Caridade são de
lindo e simpático aspecto.
Quando
pouco depois desceram e se encontraram todos reunidos, perguntaram às mulheres
como haviam dormido.
—Perfeitamente
bem —disse Misericórdia—. Em minha vida passei uma noite melhor.
—Se
desejais permanecer algum tempo, o que há em minha casa está a vossa
disposição.
Tão
cordial foi o convite, que nossos peregrinos não vacilaram am aceitá-lo, e ali
permaneceram mais de um mês, com grande proveito de todos.
Um dia
Prudência, querendo saber de que forma Cristiana tinha criado seus filhos,
pediu-lhe permissão para catequizá-los. De boa vontade consentiu a mãe nisso, e
começando pelo de menor idade, principiou assim Prudência:
—Sabes
me dizer, Jaime, quem te fez?
JAIME—
Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo.
PRUDÊNCIA—
Bem falado; e quem te salva?
JAIME—
Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo.
PRUDÊNCIA—
Como te salva Deus o Pai?
JAIME—
Pela sua graça.
PRUDÊNCIA—
Como te salva Deus o Filho?
JAIME—
Pela sua justiça, morte, sangue e vida.
PRUDÊNCIA—
E Deus o Espírito Santo, como te salva?
JAIME—
Iluminando-me, renovando meu coração e preservando-me com sua graça.
PRUDÊNCIA
(dirigindo-se a Cristiana)— É digna de encômio a maneira como educas a teus
filhos. Não necessário fazer aos outros as mesmas perguntas, já que o menos
sabe respondê-las tão acertadamente. Falarei agora com José: Queres dizer-me,
José, o que é o homem?
JOSÉ— Um
ser racional feito por Deus, como disse meu irmão.
PRUDÊNCIA—
O que significa quando dizemos que se é "pecador"?
JOSÉ—
Que o homem pelo seu pecado se deixou escravizar, e trouxe sobre ele muita
miséria.
PRUDÊNCIA—Que
se supõe no fato de que um é salvo pela Trindade?
JOSÉ—
Que o pecado é um tirano grande e poderoso; que ninguém, senão Deus, é capaz de
livrar-nos de suas garras, e que Deus é tão bom e compassivo, que se digna
resgatar o homem de tão miserável estado.
PRUDÊNCIA—
Que objeto tem Deus em salvar os homens?
JOSÉ— O
de glorificar seu nome, elogiar sua graça e justiça, e proporcionar felicidade
eterna a suas criaturas.
PRUDÊNCIA—
Quem serão salvos?
JOSÉ—
Quantos aceitarem a salvação.
PRUDÊNCIA—
Tua mãe ensinou-te bem, e prestas-te atenção aos seus ensinos. Agora, Samuel,
se não tem inconveniente, farei-lhe umas quantas perguntas. O que é o céu?
SAMUEL—Um
lugar e estado mais que abençoado, pois ali mora Deus.
PRUDÊNCIA—e
o inferno?
SAMUEL—
Um lugar e um estado muito funesto, por quanto é a morada do pecado, de Satanás
e da morte.
PRUDÊNCIA—
Por que desejarias ir para o céu?
SAMUEL—
A fim de poder ver a Deus e servi-lo sem descanso; para que veja a Cristo e o
ame eternamente, e também para que possa morar em mim aquela plenitude do
Espírito Santo que não posso desfrutar aqui em igual intensidade.
Depois
de elogiar a aplicação de Samuel, ocupou-se Prudência no exame de Mateus, o
maior.
—Há algo
—perguntou— ou houve alguma coisa que existisse antes de Deus?
MATEUS—
Não, senhora, porque Deus é eterno, e fora dEle não há nada que tivesse ser
antes do começo do primeiro dia; "porque em seis dias fez o Senhor o
céu e a terra, o mar e tudo o que neles há" [11].
PRUDÊNCIA—
O que opinas da Bíblia?
MATEUS—
Que é a santa palavra de Deus.
PRUDÊNCIA—
Não se encontra nela nada senão o que podes compreender?
MATEUS—
Sim, muitíssimo.
PRUDÊNCIA—
Quando tropeças com passagens que não compreendes, o que fazes?
MATEUS—
Penso então que Deus é mais sábio que eu; ao mesmo tempo, peço-Lhe que se digne
me fazer tudo quanto seja para meu bem.
PRUDÊNCIA—
O que acreditas no que diz respeito à ressurreição dos mortos?
MATEUS—
Acredito que os que foram sepultados se levantarão, embora incorruptíveis; e
creio nisto por duas razões: primeira, porque Deus o disse, e segunda, porque
Deus é poderoso para fazê-lo.
Neste
ponto Prudência deu fim ao exame dos rapazes, e disse:
—Deveis
atender sempre o que vossa mãe vos ensinar, porque podereis aprender dela mais
ainda. Prestem atenção também à boa conversação de outras pessoas, a que muitas
vezes está destinada ao vosso proveito; recolham cuidadosamente os ensinos que
vos dão os céus e a terra, e sobre tudo, meditem muito naquele livro que
induziu vosso pai a se fazer peregrino. Por minha parte, enquanto estejais aqui
vos ensinarei o que possa, e terei especial prazer em que me façam perguntas,
sempre que sejam sobre coisas úteis e proveitosas.
CAPÍTULO
10
Os
interesses mundanos e a misericórdia não estão de acordo. Funestos resultados
da desobediência, vistos na doença de Mateus. Ensinam aos peregrinos coisas
maravilhosas antes de recomeçarem sua viagem.
Tinham
se passado já uns oito dias da hospedagem dos peregrinos na casa, quando
Misericórdia foi objeto de marcadas atenções por parte de um sujeito que
começou a freqüentar a casa. Este, que se chamava Bom-Negócio, demonstrava uma
regular educação e era piedoso na aparência, mas estava muito apegado ao mundo.
Possuía Misericórdia
muitos atrativos; era de lindo e agradável rosto, costumava estar sempre
ocupada, e quando não tinha nada para fazer pela própria conta, tricotava ou
costurava vestidos para dar de presente aos necessitados. Bom-Negócio, que não
sabia onde nem como Misericórdia dispunha de seus lavores, apaixonou-se dela,
porque nunca a encontrava ociosa, e dizia para sim: "Aposto que terei uma
boa mulher de casa".
Misericórdia
manifestou às donzelas da casa o que se passava, e pediu-lhes informes acerca
de seu pretendente, porque o conheciam melhor que ela.
—É um
jovem aproveitado —disseram—, e faz profissão de religião; porém, segundo
tememos, é estranho ao poder regenerador do Evangelho.
—Neste
caso —afirmou Misericórdia— tudo acabou, porque tenho o firme propósito de não
ter jamais marido que possa servir-me de obstáculo no caminho que empreendi.
Prudência
considerava que a jovem não teria necessidade de buscar meios para despedi-lo;
que o mero fato de continuar trabalhando em favor dos pobres bastaria para
refrear seu zelo.
De fato,
quando novamente a encontro dedicada às suas tarefas habituais, fazendo roupa
para os pobres, disse:
—Então,
sempre trabalhando!
—Sim
—respondeu Misericórdia—, ou para mim ou para os outros.
—E
quanto ganhas por dia?
—Faço
isto —contestou Misericórdia—"para que seja rica em boas obras
dadivosas, entesourando para mim bom fundamento para o porvir, e alcançar a
vida eterna" [12].
—Mas, o
que fazes de teu trabalho? —perguntou o moço.
—Isto o
faço para vestir os despidos —disse ela.
Tanto o
desconcertou esta resposta, que se absteve de voltar à casa, e quando lhe
perguntavam o motivo, respondia que a moça era graciosa em verdade, mas tinha
idéias caprichosas.

—Não te
falei —exclamou Prudência, quando o aspirante abandonou a empresa— que o senhor
Bom-Negócio pronto te deixaria? E talvez te calunie, porque a pesar da
profissão que faz de religião, vocês dois são de índole totalmente diferente, e
a misericórdia é alheia à sua natureza.
MISERICÓRDIA—
Já tive vários pretendentes; porém, ainda que não se queixassem de minha
pessoa, a índole de meu caráter os desgostava, de forma que não podíamos estar
de acordo.
PRUDÊNCIA—
Hoje em dia a misericórdia é tida em pouca estima; as pessoas se apaixonam do
nome, mas a prática dela resulta-lhes demasiado molesta.
MISERICÓRDIA—
Porém eu prefiro morrer solteira antes que mudar de natureza, e estou resolvida
a não aceitar jamais marido que não tenha as mesmas disposições. Tinha uma
irmã, chamada Generosa, que casou com um homem tacanho e vil; mas como nunca
estavam de acordo, e minha irmã determinou continuar como antes, mostrando-se
benevolente para com os pobres, seu marido primeiro a denunciou publicamente e
depois a lançou na rua, e isto a pesar de fazer profissão de piedade. O mundo
está cheio de tais hipócritas mas nenhum deles será para mim.
Os
peregrinos estavam ainda hospedados no palácio Formoso, quando o filho maior de
Cristiana caiu gravemente doente. Tão fortes eram as dores que sofria, que sua
mãe mandou chamar um ancião e experimentado médico que vivia naquela
vizinhança, um tal senhor Experto. Este, depois de um reconhecimento do doente,
viu que a enfermidade havia tomado um aspecto maligno e deveriam aplicar-se
pronto remédios, pois o rapaz estava em perigo iminente. Fizeram-se indagações
para descobrir, se for possível, a origem de sua doença, e grande foi a
inquietação da mãe quando lhe lembraram a fruta que seu filho tinha comido,
pouco depois de terem passado pela porta para o caminho, e seu alarme cresceu a
ponto de manifestá-lhe ao doutor que a fruta procedia do pomar de Belzebu, e
era, por conseguinte, altamente danosa.
Apurou o
senhor Experto os conhecimentos médicos que possuía em favor do doente, e não
havendo acertado com o primeiro que receitou, fez-lhe tomar umas pílulas que em
pouco tempo produziram um resultado sumamente benéfico. Abundantes e amargas
lágrimas verteu o jovem ao tomar o remédio, mas seu pranto mudou em gozo ao se
sentir livre de dor e restabelecida sua saúde. Pronto pode levantar-se e
passear pela casa, e assim andava de habitação em habitação falando com
Prudência, Piedade e Caridade de sua enfermidade e da forma como tinha sido
sarado.
Cristiana,
cheia de gratidão pelo restabelecimento de seu filho, queria recompensar o
médico pelos bons serviços e cuidados.
—Terás
—disse ele— que pagar ao principal do Colégio de Médicos, segundo os
regulamentos que tratam do caso.
CRISTIANA—
Servem estas pílulas para outras coisas?
EXPERTO—
É remédio universal e serve para todas as doenças a que estão expostos os
peregrinos; bem preparado, conserva-se sempre bem.
CRISTIANA—
Neste caso, suplico-lhe que me proporcione uma provisão para o caminho: tendo
este remédio não tomarei outro.
EXPERTO—
Estes comprimidos servem como preventivos tanto como para curar; e posso
assegurar-te mais, que empregado devidamente, fará que um homem viva para
sempre. Porém, advirta-se que não deve tomar-se de outra maneira que a
prescrita; de outra forma, não fará bem nenhum.
Então
deu a Cristiana medicina para ela mesma e seus companheiros, e tendo admoestado
a Mateus que não voltasse a comer fruta proibida, saudando-os, despediu-se.
Uma vez
restabelecido Mateus, lembrando-se que Prudência havia-se anteriormente se
oferecido para responder qualquer pergunta proveitosa que lhe fosse dirigida,
perguntou:
—Como é
que a medicina é geralmente amarga ao nosso paladar?
PRUDÊNCIA—
Aí podes aprender que da mesma forma são desagradáveis ao coração mundano a
Palavra de Deus e seus efeitos.
MATEUS—
A medicina, quando acerta, limpa o corpo; o que pode aprender-se disto?
PRUDÊNCIA—
Que a Palavra divina, quando opera eficazmente, purifica o coração e a mente: o
que uma faz pelo corpo, a outra o faz pela alma.
MATEUS—
Que devemos aprender ao ver que as chamas do fogo sobem, e que os raios do sol
descem e fazem sentir sua influência desde arriba para abaixo?
PRUDÊNCIA—
A subida das chamas nos ensina a enlevar o coração ao céu em ferventes desejos;
e os raios de luz, ao descerem, nos lembram que o Salvador do mundo, embora
excelso, nos alcança com sua graça e amor ainda em nossa humilde condição.
MATEUS— De
onde obtêm as nuvens sua água?
PRUDÊNCIA—Do
mar.
MATEUS—
O que podemos aprender disto?
PRUDÊNCIA—
Que os ministros devem receber sua doutrina de Deus.
MATEUS—
E do fato que depois se descarreguem em terra?
PRUDÊNCIA—
Que os ministros devem proporcionar ao mundo os conhecimentos que de Deus
obtêm.
MATEUS—
O que nos ensina o arco-íris formado pelo sol?
PRUDÊNCIA—
Que o pacto da graça de Deus nos é confirmado em Cristo.
MATEUS—
As fontes de água procedem dos grandes depósitos de água, chegando até nós
filtrando-se pela terra; existe algum ensino aqui?
PRUDÊNCIA—
Sim, podemos aprender que a graça de Deus chega até nós por via de Jesus.
MATEUS—
E dos mananciais que se encontram nos cumes dos altos morros?
PRUDÊNCIA—
Estes ensinam que o Espírito de graça manifestar-se-á em alguns que são nobres
e de alta esfera, o mesmo que em muitos que são pobres e humildes.
MATEUS—
O fogo, quando se apodera do pavio da vela, o que deve nos lembrar?
PRUDÊNCIA—
Isto deve lembrar-nos que se a graça divina não acende nossos corações, não
existirá em nós a verdadeira luz da vida.
MATEUS—
Que ensino existe no fato de que se consumam o pavio e a cera da vela para dar
luz?
PRUDÊNCIA—
Podemos aprender disto que o corpo, a alma e todo devem estar ao serviço de
Deus e gastar-se para manter viva em nós a graça divina.
MATEUS—
Dizem que o pelicano fere seu próprio peito com o bico.
PRUDÊNCIA—
Isto diziam os antigos que era para alimentar seus filhinhos com seu sangue.
Cristo, de igual modo sara os seus, e o salva da morte derramando seu próprio
sangue.
MATEUS—
E que deve lembrar-nos o canto do galo?
PRUDÊNCIA—
O pecado de Pedro e seu arrependimento. O canto do galo indica também que
começa a amanhecer, e isto deve te lembrar o último e terrível dia do Juízo.
Quando
houve transcorrido o mês que tinham acordado que duraria sua permanência na
casa, os viajantes notificaram as donzelas que lhes convinha pôr-se novamente
em marcha. Em vista de tal resolução, José fez lembrar a sua mãe que teria
necessidade de pedir ao senhor Intérprete os serviços de Bom Coração para o que
restava do caminho. Cristiana, que havia-se esquecido, fez em seguida uma
solicitude com essa intenção, e rogou a Vigia, o porteiro, que a fizesse chegar
por algum mensageiro de confiança às mãos de seu fiel amigo, o qual, conhecendo
seu conteúdo, enviou dizer que a petição seria outorgada.
Vendo a
família que os peregrinos estavam decididos a marchar-se, reuniram-se todos
para dar graças a seu Rei por ter-lhes enviado hóspedes tão proveitosos. Depois
quiseram ensinar-lhes algumas das coisas extraordinárias que havia na casa, a
fim que pudessem meditar nelas pelo caminho.
Primeiro,
num pequeno quarto, mostraram-lhes fruto da árvore que comeu Eva e deu depois a
seu marido, pelo que foram expulsos do Paraíso. Cristiana, perguntada sobre o
que era, não sabia se fosse alimento ou veneno, e a explicação que disso lhe
deram a deixou vivamente impressionada.
Em outro
lugar mostraram-lhe a escada de Jacó. Havia precisamente então anjos que subiam
por ela, e tão fascinante era à vista, que os peregrinos não podiam afastar
seus olhares do espetáculo. Iam mostrá-lhes outra maravilha, quando Jaime pediu
que os deixassem ali mais um pouco; permaneceram, pois, largo tempo
deleitando-se com tão agradável perspectiva. Os conduziram depois a um lugar
onde viram pendurada uma âncora de ouro. Disseram a Cristiana que descesse,
porque, agregaram, é de grande importância tê-la sempre convosco, para que
possais com ela ficar firmes em caso que encontreis tempo tormentoso. Dali os
acompanharam ao monte onde nosso pai Abraão foi para oferecer seu filho Isaque,
e lhes mostraram o altar, a lenha, o fogo e o cutelo para aquele sacrifício
empregados. A vista destas lembranças obrigou-os a prorromper em louvores ao
Senhor pelo amor e abnegação do patriarca Abraão.
Depois
de ter-lhes ensinado estas coisas, Prudência os levou ao comedor, e colhendo um
bem afinado clavicórdio, improvisou um cântico, baseado sobre o que os hóspedes
acabavam de ver, que dizia:
Para
saudável aviso,
O fruto
de Eva vos mostrei,
E a
escada com os anjos
Que viu
Jacó em Betel;
Uma
âncora de grande preço
Vos
entreguei para o bem;
Mas
estas coisas não bastam,
Se, como
Abraão, não ofereceis
O melhor
em sacrifício,
Demonstrando
a vossa fé.
CAPÍTULO
11
Os
peregrinos, acompanhados de Bom Coração, passam felizmente pelos Vale da
Humilhação. Visitam o lugar onde teve lugar o combate entre Cristiano e
Apolião.
Assim
agradavelmente entretidos, ouviram que chamaram à porta. Era Bom Coração, e
grande foi o gozo dos peregrinos ao vê-lo; sua presença lembrava-lhes como
fazia pouco tempo havia dado morte ao feroz gigante Grima o Sanguinário, e os
havia liberado dos leões.
Saudando
a Cristiana e a Misericórdia, disse-lhes:
—Meu
Senhor enviou a cada uma de vós uma garrafa de vinho, junto com um pouco de grão
tostado e um par de romãs; também enviou-lhes alguns figos e passas para os
rapazes; isto vos servirá de refrigério durante o caminho.
Logo se
dispuseram a marchar-se, e Prudência e Piedade os acompanharam um pouco. Na
porta, Cristiana perguntou ao porteiro se recentemente alguém havia passado
pelo caminho.
—Não
—disse—, mas faz algum tempo passou um, quem me contou que acabava de
cometer-se um roubo de consideração no caminho real por onde havereis de
passar; porém —agregou—, já capturaram os bandidos, e pronto instruirão causa
criminal contra eles.
As
mulheres assustaram-se um pouco ao receberem estas notícias.
Não há
por que ter medo, mãe —disse Mateus—, já que o senhor Bom Coração vai
acompanhar-nos.
Cristiana
despediu-se afetuosamente do porteiro.
—Me
encontro —disse—sumamente agradecida pelas bondades que mostraram para comigo
desde que cheguei a esta casa, e pelo tratamento carinhoso e amoroso que
tiveram com meus filhos; não sei como recompensar tais favores. Mas, em prova
de meu agradecimento, sirva-se aceitar esta bugiganga —e assim dizendo, colocou
uma peça de ouro em sua mão.
O
porteiro a cumprimentou respeitosamente, e disse:
—Que a
tuas vestes sejam sempre brancas e não falte o óleo santo em tua cabeça. Que
Misericórdia viva e não sejam escassas as suas obras.
E aos
rapazes disse:
—Fugi
dos desejos juvenis, e segui a santidade em companhia dos que são circunspetos
e sábios; assim infundireis gozo no coração de vossa mãe, e alcançareis louvor
de parte de todos os que gozam de são juízo.
Empreendida
já a marcha, adiantaram-se ate chegarem ao cume da colina. Naquele momento,
Piedade lembrou-se que tinha deixado na casa um presente para nossos viajantes,
e voltou apressadamente em procura dele. Durante sua ausência, Cristiana ouviu,
procedente de um bosque a pouca distância deles, à direita, um trino estanho e
de uma harmonia deleitosa com palavras semelhantes a estas:
Mostraste
o teu favor
Em minha
vida sem cessar;
Em tua
casa, Deus de amor,
Para
sempre hei de morar.
Escutando
a atenção, parecia que outras notas continuavam após as primeiras, dizendo:
Por quê?
Porque o Senhor é bondoso;
Segura
para sempre é sua piedade;
Enquanto
passa o tempo pressuroso,
Permanece
imutável sua verdade.
—Quem
produz tão melodiosas notas? —perguntou a Prudência.
—São as
nossas aves silvestres —respondeu ela—; raras vezes entoam estes acordes, senão
em primavera, quando aparecem as flores e os raios do sol começam a fazer
sentir seu calor; então podem ser ouvidas todo o tempo. Freqüentemente saio
para ouvi-las, e às vezes também temos algumas domesticadas em casa. Nos fazem
boa companhia 1d estamos abatidas de espírito, e convertem os bosques e lugares
solitários em lugares deliciosos e apetecíveis.
Pronto
apareceu novamente Piedade, e disse a Cristiana:
—Olha,
trago uma relação das coisas que viste na casa, a qual servirá para trazê-las à
memória para tua edificação e consolo, se acaso chegasses a esquecê-las.
Juntos
desceram da colina ao Vale da Humilhação; a ladeira era escarpada e o caminho,
escorregadio; porém, andando com muita cautela, desceram sem tropeço. Uma vez
no Vale, Piedade disse a Cristiana:
—Este é
o lugar onde teu marido encontrou-se com o infernal Apolião e travou-se a
empenhada luta de que sem dúvida ouviste falar. Mas tem ânimo; tendo a Bom
Coração convosco, esperamos tereis melhor sorte.
Neste
ponto, depois de havê-las encomendado ao cuidado e proteção de seu guia, as
donzelas se despediram deles. Pelo caminho Bom Coração disse:
—Não se
deve ter tanto medo deste vale, pois aqui não há nada que possa nos danificar,
a não ser que atraiamos o mal sobre nós mesmos. É verdade que aqui Cristiano
encontrou a Apolião, com quem teve uma luta encarniçada; mas aquele combate foi
resultado dos deslizes que teve ao descer da ladeira; aos que escorregam lá aguardam-lhes
combates aqui. Por isso este vale tem tão ma fama; pois o vulgo, ouvindo dizer
que algum desastre aconteceu a Fulano de Tal em tal lugar, imagina que o sítio
é freqüentado por algum demônio ou espírito mau quando, desgraçadamente, estas
coisas que acontecem aos viajantes são o fruto de suas obras.
Este
Vale da Humilhação é, de fato, uma comarca tão fértil como outra qualquer
fecundada pelo sol, e estou convencido que não será difícil que encontremos
algo por aqui que explique por que Cristiano esteve tão apurado.
JAIME— O
que é aquela coluna? Parece que há algo escrito nela; vamos a vê-la.
Aproximaram-se,
e encontraram um letreiro que dizia: "Os deslizes de Cristiano, antes de
chegar neste lugar, foram a causa da luta que aqui deveu suportar; sirva isto
de admoestação a os que no sucessivo viajem por este caminho".
BOM
CORAÇÃO— Não você falei que devia achar-se por aqui alguma explicação dos
problemas de Cristiano? E, seja dito isto —agregou voltando-se para Cristiana—
sem opróbrio de Cristiano nem de muitos outro que tiveram igual sorte, pois é
muito mais fácil subir esta ladeira que descê-la, o qual pode se dizer de mui
poucas ladeiras. Mas deixemos em paz o bom homem, repousa já, e também alcançou
uma vitória esplêndida sobre seu inimigo, queira o que mora nas alturas que não
nos sobrevenha coisa pios quando, como ele, passemos por esta prova.
Voltemos
agora a falar deste Vale da Humilhação; em toda a região não há um território
tão bom e fértil como este. O terreno é rico, e já vedes como abundam as
pastagens. Chegue algum de vós em verão, e ainda que não conheça nada com
anterioridade deste lugar, se sabe apreciar o que lhe é oferecido à vista, não
pode deixar de recrear-se com sua perspectiva. Quão verde é o vale! Quão
formoso com seus lírios! Tenho conhecido muitas pessoas da classe trabalhadora
que lograram ter boas possessões nesta comarca ("Ainda que o Senhor é
excelso, contudo atenta para o humilde; mas ao soberbo, conhece-o de
longe" [13]),
por quanto o terreno é muito fecundo e produz muitíssimo. Alguns também
sentiram não poder passar diretamente desde este vale à casa de seu Pai
Celestial, e evitar os incômodos que ocasiona o atravessar as colinas e
montanhas; mas o caminho foi traçado, e é preciso segui-lo.
Nesta
agradável conversação andavam todos entretidos, quando perceberam um pastor que
apascentava as ovelhas de seu pai. O moço trajava roupas muito simples; mas
tinha o rosto alegre e bem parecido, e, sentado, distraia seu ócio cantando.
—Ouvi o
que canta — disse Bom Coração.
Prestando
atenção, ouviram que cantava o seguinte:
Cair não
teme quem em terra jaz;
Quem não
tem orgulho não se eleva;
Jesus no
humilde se compraz
E, como
Guia, a sua mansão o leva.
Com o
que Deus me dá, vivo contento,
Em
estreiteza igual que na fartura;
Por te
seguir, Senhor, feliz me sinto
Sob a
tua santa proteção segura.
É peso a
abundância ao peregrino,
Que lhe
impede marchar com ligeireza;
Será
melhor com pouco no caminho,
Depois
terá a celestial riqueza.

BOM
CORAÇÃO—Ouvis? Atrevo-me a afirmar que esse moço o passa mais alegremente e tem
o espírito mais tranqüilo e sossegado que quem viste seda e veludo; mas
retomemos a nossa conversa.
Em outro
tempo nosso Senhor tinha uma morada neste vale; gostava muito de estar aqui;
comprazia-se em passear por estas pastagens e respirar sua agradável brisa.
Neste lugar, as pessoas se sentem livres do ruído e barulho da vida. A confusão
e o estrondo são alheios a todos os outros estados; somente no Vale da
Humilhação podem encontrar-se a tranqüilidade e o retiro. Nada há que estorve a
gente em suas meditações, como costuma acontecer nos outros lugares. É um vale
que ninguém freqüenta, senão aquele que ama a vida de peregrino; e se bem
Cristiano teve a má sorte de encontrar-se aqui com Apolião, e de lutar
furiosamente com ele, os advirto que em outras ocasiões os homens depararam-se
com anjos por este caminho, acharam preciosas pérolas e encontraram palavras de
vida eterna.
Não
somente tinha nosso Senhor uma residência aqui, como já disse, e achava
especial prazer em andar por aqui, senão que legou aos que moram no vale ou o
atravessam uma renda anual, a qual deve sê-lhes paga regular e fielmente para
sua manutenção, e a fim de animá-los a prosseguir em sua peregrinação.
SAMUEL—
Entendo que neste lugar meu pai e Apolião travaram luta; mas, onde foi o
combate? Pois vejo que o vale é amplo.
BOM
CORAÇÃO— Lutaram a pouca distância daqui, num estreito desfiladeiro, um pouco
além do lugar chamado de Planície do Esquecimento; e certamente que é a parte
mais perigosa destes contornos, pois se alguma vez os peregrinos sofrem algum
desastre, é precisamente quando esquecem dos favores recebidos e do imerecidos
que são estes. Outras várias pessoas também estiveram aqui em grande apuro; mas
falaremos com mas extensão do lugar quando cheguemos a ele, porque estou
persuadido que haverá até hoje algum rasto do combate, ou algum monumento para
comemorá-lo.
Misericórdia—Sinto-me
tão bem neste vale como em outro qualquer do caminho; parece-me que o lugar
está em harmonia com meu espírito. Me resulta muito grato estar onde não se
percebe barulho de carros nem de rodas; aqui pode um, sem incômodo nem estorvo,
refletir sobre o que é, de onde veio, o que tem feito e aquilo para o que o Rei
o chamou; aqui a gente pode meditar, humilhar-se e cultivar a pobreza de
espírito até que seus olhos cheguem a ser como "as pesqueiras de
Hesbom". Os que andam devidamente por este vale o convertem em fonte de
águas; a chuva também, que Deus envia desde o céu, enche os estanques. Deste
lugar o Rei dará aos seus as suas vinhas, e os que andam por aí cantarão, como
fez Cristiano, apesar de seu encontro com Apolião.
Bom
Coração— É verdade; muitas vezes atravessei este vale, e em minha vida estive
melhor. Tenho servido de guia para vários peregrinos, e eles dizeram o mesmo.
"Àquele, pois, olharei, diz o Rei, quem é pobre e humilde de espírito, e
que treme à minha palavra".
Nisto
chegaram ao ponto onde tivera lugar o referido combate. Então disse Bom
Coração:
—Eis
aqui o lugar: neste ponto manteve-se Cristiano, e dali saiu Apolião a seu
encontro. E olha, Cristiana, estas pedras estão ainda manchadas com o sangue de
teu marido, e ainda podemos ver por aqui e lá algumas farpas dos dardos
quebrados de Apolião. Este terreno evidência quão fortemente deviam bater o
chão, para afirmar-se melhor um contra o outro, quando com seus golpes falhos
fenderam e destrocaram as mesmas pedras. Em verdade Cristiano comportou-se
corajosamente, e mostrou tanto arrojo como poderia ter feito o próprio
Hércules. Quando Apolião foi vencido, refugiou-se no seguinte vale, que é o da
Sombra-da-Morte, no qual pronto chegaremos. Ali também há um monumento, com uma
inscrição comemorando por séculos sem fim esta batalha, e a vitória que
alcançou Cristiano.
Os
peregrinos dirigiram seus passos ao monumento que se levantava no caminho
mesmo, e leram a inscrição, que dizia textualmente:
Aqui
teve lugar um grande combate,
Bem
estranho, porém bem verdadeiro:
Cristiano
e Apolião, valentes ambos,
Providos
de suas armas se bateram.
Mas
Cristiano lutou com tal destreza
Que pôs
em fuga a seu inimigo fero;
E em
memória do triunfo se levanta
Este
nobre, eterno monumento.
CAPÍTULO
12
Os
peregrinos estão muito apurados no Vale da Sombra-da-Morte; porém, ajudados
pelo Todo Poderoso saem sem lesões. Sangrenta luta entre Bom Coração e o
gigante Pancada, que acaba com a morte deste.
Tendo
passado este lugar, chegaram à entrada do Vale da Sombra-da-Morte. Este vale
era maior que o outro; nele abundavam perigos espantosos, como muitos podem
testemunhar; mas os nossos viajantes conseguiram atravessá-lo melhor do que
teria sido de não terem a luz do dia e a presença e apóio do guia.
Ao se
internarem no vale, pareceu-lhes ouvir gemidos como de homens nas agonias da
morte, vozes lastimosas em extremo, junto com lamentos como de pessoas que
sofrem tormentos excessivos. Estes ruídos fizeram tremer os rapazes, e
empalidecer e estremecer-se às mulheres.
Animados,
porém, pelo guia, avançaram até chegar a um lugar onde sentiram que a terra
tremia sob seus pés como se houvesse um vazio; escutaram também uns assobios
como de cobras, mas ainda nada apareceu à vista.
—Ainda
não chegamos ao fim deste horrível lugar? —perguntaram as crianças.
Mas Bom
Coração os exortou a terem ânimo, e a que olhassem bem onde punham os pés para
não cair numa armadilha.
O
pequeno Jaime sentiu-se enfermo; mas, ao parecer, a causa principal de sua
doença era o medo que sentia. Sua mãe deu-lhe um gole do licor que haviam-lhes
proporcionado em casa de Intérprete e algo do remédio que o senhor Experto
tinha preparado, e o menino se repus um tanto. Assim continuaram vale adentro
até chegar à metade, quando Cristiana exclamou:
—Parece-me
que vejo algo no caminho, lá na frente, uma coisa feia e deforme como nunca
antes vi.
Interrogada por José, não soube dar outros
sinais, senão que se aproximava rapidamente a eles.
—Bom
—disse Bom Coração—, os que sentem mais medo aproximem-se de mim.
O ente
infernal se aproximava, e o guia avançava rumo a ele; mas eis que, quando
faltava pouco para se encontrarem, de repente o inimigo desvaneceu-se. Então
lembraram do que anteriormente tinham-lhes falado: "Resisti ao diabo, e
ele fugirá de vós" [14].
Depois
deste sucesso continuaram o caminho algo mais animados; porém um pouco mais
adiante, Misericórdia, olhando para trás, pensou ver um leão que corria atrás
dela. A fera dava bramidos aterradores, que ecoavam por todo o vale,
aterrorizando a todos, exceto o guia. Ao ver que os alcançava, Bom Coração
colocou-se entre a fera e os viajantes, se dispondo a resistir; porém quando o
leão viu que havia determinado opor-se-lhe, retirou-se e cessou de
incomodá-los.
Continuando
sua marcha, precedidos pelo guia, chegaram ao ponto onde o caminho era
atravessado por uma fossa, e antes que pudessem tomar as medidas necessárias
para esquivá-lo, se viram envolvidos numa densa neblina. Os peregrinos achavam
estar perdidos.
—O que
faremos agora? —exclamaram, mas o guia acalmou sua angústia, dizendo:
—Não
temais, detende-vos e vereis que esta dificuldade também desaparece.
Detiveram-se
imóveis, e nesta situação ouviram bem distintamente o barulho de seus inimigos
infernais, que pareciam correr de um lugar para outro, e distinguiram com maior
claridade as chamas e a fumaça do Abismo. Então disse Cristiana a Misericórdia:
—Agora
vejo por quais horrores teve que passar meu marido. Muito ouvi falar deste
lugar, mas não sabia o que fosse. O coitado passou por aqui sozinho e na
escuridão da noite, enquanto estes demônios bramavam em volta dele como se
quisessem despedaçá-lo. Muitos têm falado do Vale da Sombra-da-Morte, porém
ninguém pode saber o que é até encontrar-se nele. "O coração conhece a
amargura de sua alma, nenhum estranho intrometer-se-á em sua alegria". É
terrível estar aqui.
BOM
CORAÇÃO— Isto é como negocias nas ruas ou descer no abismo; é como estar no
coração do mar ou descer aos fundamentos das montanhas: agora nos parece que a
terra, com seus ferrolhos e grades, os mantém encerrados para sempre. Mas "quando
andar em trevas, e não tiver luz nenhuma, confie no nome do Senhor, e firme-se
sobre o seu Deus" [15]. Por minha
parte, como já disse, muitas vezes atravessei este vale, e achei maiores
perigos que os atuais; porém, me vedes ainda com vida. Não quero me vangloriar,
porque não sou meu próprio salvador, mas confio que pronto nos será enviado
socorro. Vamos, peçamos luz Àquele que pode alumiar nossas trevas, que é
poderoso para repreender, não a estes demônios somente, senão também a todos os
que se encontram nos antros do inferno.
Em
seguida alçaram a voz em demanda de socorro, e Deus atendeu sua oração enviando-lhes
luz, por meio da qual viram que já não havia lama nem obstáculo algum. Mas não
por isso estavam no fim do vale, e deveram continuar entre fedores fétidos e
nauseabundos que os incomodavam grandemente,
—Não é
agradável estar aqui —disse Misericórdia a Cristiana—; como na porta, ou na
casa do Intérprete, ou no palácio de que acabamos de sair.
—Porém
—disse um dos rapazes—, em troca, não é tão desagradável atravessar este lugar
como o seria permanecer sempre nele; figura-se-me que um dos motivos pelo que
nosso caminho nos conduz por ali é para que a casa celestial que nos está
preparada pareça mais deleitável pelo contraste que faz com este vale.
BOM
CORAÇÃO— Bem dito, Samuel; falaste como um homem sábio.
SAMUEL—
Se saio daqui, apreciarei a luz e um bom caminho mais do que em minha vida
tenho feito.
BOM
CORAÇÃO— Não demoraremos muito em sair.
JOSÉ— E
ainda não pode ver-se o fim do vale?
BOM
CORAÇÃO— Olhai bem onde pondes vossos pés, porque agora chegamos aonde há laços
e redes.
Avançaram
com cuidado; mas as armadilhas e laços os molestaram muito. Nesta parte do
caminho descobriram, numa vala do lado esquerdo, o cadáver de um homem com as
carnes desgarradas.
—Aquele
—explicou o guia— é um tal de Descuidado, que fazia o mesmo caminho que nós,
mas faz muito tempo jaz ali. Quando foi capturado e perdeu a vida, acompanhava
um tal de Cauteloso, que escapou das mãos de seu perseguidores. Não podeis
imaginar-vos quantos perdem a vida aqui, e ainda assim os homens são tão loucos
e atrevidos, que empreendem com leviandade a peregrinação, e acham poder passar
sem guia. Pobre Cristiano! Foi um prodígio que se liberasse destes perigos; mas
era muito amado de Deus, e também possuía um coração sincero e valoroso; de
outro jeito, nunca teria saído ileso.
Aproximavam-se
os viajantes à saída do vale e ao lugar onde Cristiano tinha visto a caverna de
Papa e Pagão, quando lhes saiu ao encontro um gigante, chamado Pancada, quem
sabia amedrontar os jovens peregrinos. Chamando a Bom Coração pelo seu nome,
disse-lhe:
—Quantos
vezes te foi proibido fazer isto?
BOM
CORAÇÃO—A que te referes?
PANCADA—
A quê? Já sabes o que queiro dizer; mas pronto acabarei eu com teus serviços.

BOM
CORAÇÃO— Porém, antes de bater-nos, entendamo-nos sobre os motivos de nossa
disputa.
Durante
este diálogo os peregrinos tremiam, não sabendo o que fazer. O gigante
continuou:
—Roubas
ao país, e teus roubos são os mais inqualificáveis.
BOM
CORAÇÃO— Esta não é senão uma acusação geral; vamos aos fatos concretos.
PANCADA—
Traficas com carne humana; recolhes mulheres e crianças, os levas a um país
estrangeiro, com grande detrimento e quebrando do reino de meu Senhor.
BOM
CORAÇÃO— Sou servo do Deus do céu; a minha ocupação é a de persuadir os homens
a que se arrependam; foi-me confiado o encargo de fazer o possível para que
estes homens, mulheres e crianças se convertam das traves para a luz, e da
potestade de Satanás para Deus. e se este é o motivo da pendência, travaremos
luta quando desejes.
O
gigante avançou então, armado de um grande cacetete, e Bom Coração foi ao seu
encontro, desembainhando no ato sua espada. Sem mais palavras principiou o
combate e à primeira cacetada de seu contrário, Bom Coração caiu sobre um de
seus joelhos. Ao ver este contratempo, as crianças e mulheres proferiram em
gritos de angústia; mas o guia, recuperando-se, acometeu seu adversário com
tantos brios que o feriu num braço. Deste modo lutaram, durante uma hora,
chegando a fatigar-se até tal extremo, que o hálito saia dos narizes do gigante
como vapor de um caldeiro fumegante.
Deram-se trégua por um breve intervalo, e o
gigante sentou-se a descansar, enquanto Bom Coração entregou-se à oração. Os
peregrinos não cessaram de lançar suspiros e de chorar durante todo o tempo que
durou o combate.
Repostas
um pouco as suas forças, voltaram os combatentes à luta. Bom Coração, de um
golpe certeiro, fez o gigante morder o pó.
—Alto
—exclamou este—, deixa-me levantar.
Bom
Coração, no cumprimento das leis da honra, o deixou pôr-se novamente em pe, e
renovou-se a furiosa batalha. Com uma forte cacetada, Pancada quase quebra o
crânio de Bom Coração, vendo o qual este, acendido seu espírito, abalançou-se
sobre seu adversário, e conseguiu dar-lhe uma estocada debaixo da quinta
costela. O gigante, desfalecido, não conseguia empunhar seu cacetete, e Bom
Coração, com um último golpe, cortou-lhe a cabeça.
Grande
foi o regozijo dos peregrinos ao verem morto seu inimigo; e Bom Coração, não
menos contente, deu humildemente graças a Deus pela vitória que lhe havia
proporcionado. Cumprido deu dever, levantaram entre todos uma coluna, sobre a
qual fixaram a cabeça do gigante, colocando embaixo o seguinte letreiro, para
que os transeuntes puderam ler claramente:
Esta foi
a cabeça de um gigante
Que a
todo peregrino incomodava,
Para que
não seguiram adiante,
E todo o
mal possível lhes causava.
Mas eu,
Bom Coração, sempre ansioso
De
guiá-los, como Cristo me ordenava,
Lutei
com ele e o deixei vencido,
Destruindo
adversário tão odioso.
CAPÍTULO
13
Encontram-se
os peregrinos com Integridade, que lhes faz agradável e proveitosa companhia.
Conversação sobre as dificuldades e problemas de Receoso, e seu triunfante fim.
A pouca
distância do lugar onde havia acontecido o referido combate, havia uma altura
levantada, com o objeto que desde ela os peregrinos pudessem desfrutar de um
panorama mais extenso. Desde essa altura foi onde Cristiano viu pela primeira
vez seu irmão Fiel. Chegados ali nossos viajantes, sentaram-se para descansar e
reparar suas forças com um ligeiro refrigério, reinando entre eles muita
alegria por ver-se livres de tão formidável inimigo.
Enquanto
comiam, Cristiana perguntou ao guia se não havia recebido dano durante o
combate.
BOM
CORAÇÃO— Nada, somente umas ligeiras feridas na carne, e estas, longe de me
machucar, servem presentemente como prova de meu amor para meu Senhor, e para
vós logo servirão, pela graça de Deus, para aumentar meu galardão.
CRISTIANA—
Mas não sentiste medo quando o viste sair com seu cacetete?
BOM
CORAÇÃO— É o meu dever desconfiar de minha própria habilidade e forças, a fim que
coloque a minha confiança nAquele "que é mais poderoso que todos
nós".
CRISTIANA—
O que pensaste quando te derrubou no primeiro golpe?
BOM
CORAÇÃO— Lembrei-me que assim foi tratado meu Senhor mesmo, e ainda assim, foi
Ele que finalmente levou a vitória.
MATEUS—
Pensem outros o que desejem, de minha parte considero que Deus mostrou
maravilhosa bondade para conosco tirando-nos do vale e liberando-nos da mão
deste inimigo. Acho que já não devemos desconfiar mais deste Deus, em vista da
admirável prova de amor e acaba de dar-nos num lugar como este.
Depois
disto, marcharam adiante. Ao pouco tempo, debaixo de um carvalho, encontraram
um ancião peregrino, entregado a um profundo sono. Souberam que era peregrino
pelas suas vestes, seu bordão e seu cinto.
Acordado
pelo guia, o homem alçou a vista e perguntou, sobressaltado:
—O que
há? Quem sois e o que fazeis aqui?
BOM
CORAÇÃO— Não vos assusteis, homem; somos todos amigos.
Ainda
assim falando, o ancião levantou-se e distanciou-se deles, até saber com maior
segurança quem eram. Então, agregou Bom Coração:
—Meu
nome é Bom Coração; sou o condutor destes peregrinos que se dirigem ao país
celestial.
—Peço-vos
que dispenseis meu receio e desconfiança —disse o peregrino, que se chamava
Integridade—; temia que pertencêsseis à quadrilha que roubou, pouco tempo
atrás, a Pouca-Fé, mas agora que vos presto mais atenção, vejo que sois pessoas
honestas.
BOM
CORAÇÃO— E que poderias ter feito para te defender, se de fato tivéssemos sido
os salteadores de caminhos?
INTEGRIDADE—
O que teria feito? Teria lutado com todas as minhas forças, e assim fazendo,
estou seguro que nunca me teriam vencido. Um cristão não pode ser vencido, e
não ser que se renda ele mesmo.
BOM
CORAÇÃO— Bravo, amigo! Falaste a verdade; vejo que és moeda de boa lei.
INTEGRIDADE—
E eu também vejo que sabes o que é a verdadeira vida de peregrinação, pois
todos os outros figuram-se que somos os primeiros a sermos vencidos.
BOM
CORAÇÃO— Já que tão felizmente nos encontramos, rogo-te me digas teu nome e o
de teu povo natal.
INTEGRIDADE—
Pelo que respeito a meu nome, não posso satisfazer-te; quanto a minha
procedência, venho do povo da Estupidez, que se encontra muitas léguas além da
cidade da Destruição.
BOM
CORAÇÃO— Ah! Então és tu, hein? Acho que já adivinho teu nome; te chamas
Integridade, não é verdade?
O ancião
corou.
—Integridade
em abstrato, não —disse—; contudo, assim me chamam, e gostaria que o meu
caráter correspondesse a meu nome. Mas, como pudeste deduzir que sou tal homem,
dado que provenho de um tal lugar?
BOM
CORAÇÃO— Já havia ouvido falar de ti ao meu Senhor, quem sabe tudo quanto se
passa na terra; porém mais de quatro vezes estranhei de ter achado alguém de
teu povo, porque é pior ainda que a mesma cidade de Destruição.
INTEGRIDADE—
Sim; vivemos mais afastados das influências diretas do sol e, por conseqüência,
somos mais frios e estúpidos; mas ainda quando um homem se encontrasse numa
montanha de gelo, se o Sol de Justiça resplandecesse sobre ele, seu gelado
coração se derreteria; assim aconteceu comigo.
BOM
CORAÇÃO— Acredito, pai Integridade, acredito; pois sei que é verdade.
Então o
ancião cumprimentou os peregrinos com o ósculo santo da caridade, e
perguntou-lhes como se chamavam e o que haviam passado desde que empreenderam a
viagem.
CRISTIANA—
Meu nome, sem dúvida, não te será desconhecido; o bom Cristiano era meu esposo,
e estes quatro jovens são seus filhos.
Que
arrebato de alegria teve o bom de Integridade ao ouvir disto! Deu pulos como um
moço, sorriu e os abençoou com mil desejos para sua prosperidade, dizendo:
—Muito
ouvi falar de teu marido, de sua viagem e das lutas que susteve durante sua
vida. Diga-se para teu consolo que sua fama espalhou-se por toda parte: sua fé,
seu valor, sua paciência nos sofrimentos e sua sinceridade em tudo fizeram célebre
seu nome.
Conhecendo
os nomes dos rapazes, disse-lhes:
—Mateus,
segue a Mateus o publicano, não certamente no vício, porém sim na virtude.
Samuel, como Samuel o profeta, homem de fé e de oração. José, como José em casa
de Potifar, sê casto e fugi da tentação. E tu, Jaime, imita a conduta de Tiago
o irmão do Senhor.
Quando
depois lhe falaram de Misericórdia, e de como havia-se separado de seu povo e
de seus parentes para acompanhar a Cristiana e seus filhos, agregou:
—Misericórdia
é teu nome, e pela misericórdia serás sustentada e conduzida através de todas
as dificuldades que te assaltem pelo caminho, até que chegues onde poderás
olhar face a face Àquele que é fonte de misericórdia.
Enquanto
caminhavam juntos, o guia, que tinha ouvido com complacência as palavras de seu
novo companheiro de viagem, perguntou se havia conhecido um tal de Receoso, que
saiu da mesma comarca para ir em peregrinação.
INTEGRIDADE—
Sim, muito bem eu o conhecia. Era um homem que tinha a raiz da religião em seu
coração, mas era o peregrino mais molesto de quantos conheci.
BOM
CORAÇÃO— Já vejo que o conhecias, porque o descreveste perfeitamente.
INTEGRIDADE—
Conhecê-lo! Fomos companheiros íntimos por muito tempo, e estávamos juntos
quando pela primeira vez o assaltaram temores acerca do porvir.
BOM
CORAÇÃO— E eu fui seu guia desde a casa de meu amo até as portas da Cidade
Celestial.
INTEGRIDADE—
Nesse caso saberás quão fastidioso era.
BOM
CORAÇÃO— É verdade, mas podia muito bem suportá-lo tudo, porque os de minha
profissão temos muito freqüentemente o encargo de conduzir pessoas de
semelhante índole.
INTEGRIDADE—
Fala-nos algo dele; gostaríamos de saber como se comportou enquanto esteve em
tua companhia.
BOM
CORAÇÃO— Este sujeito sempre temia que não chegaríamos onde desejava ir. Tudo
quanto ouvia dizer, se tinha a menor aparência de oposição, o assustava. Dizem
que perto de um mês andou gemendo e chorando na beira do Pântano da
Desconfiança; não se atrevia a aventurar-se, por mais que viu várias pessoas
atravessá-lo, algumas das quais lhe ofereceram a mão para ajudá-lo. Também não
queria retroceder. Dizia que morreria se não chegasse à Cidade Celestial e,
ainda assim, caia e se abatia diante de cada dificuldade que se apresentava, e
tropeçava em cada palha que achava no caminho. Depois de ter permanecido
prostrado muito tempo à beira do Pântano, um dia de sol aventurou-se e
conseguiu atravessá-lo sem saber como, e uma vez que esteve na margem oposta,
apenas se acreditava. Tinha, parece-me, um Pântano da Desconfiança em sua
mente: um pântano que levava consigo por todas partes. Deus outro modo, nunca
teria sido o que era. Chegou à porta que, como sabeis, está no princípio deste
caminho, e ali também aguardou muito tempo sem ousar chamar. Quando a porta se
abria, se retirava, cedendo a outros seu lugar, pois dizia que não era digno de
entrar. Assim é que, embora chegasse antes que outros, muitos entraram primeiro
que ele. Ali ficava tremendo e encolhendo-se, dava pena vê-lo; mas não queria
voltas atrás. Finalmente colheu a aldrava e deu um par de batidinhas;
abriram-lhe a porta em seguida, mas ele se retirou como antes. Então saiu o
porteiro e lhe disse:
—Tu
tremes, o que desejas?
Receoso,
ao ouvir isto, caiu por terra. O porteiro maravilhou-se ao vê-lo tão minguado
de ânimo e o alentou, dizendo:
—A paz
seja contigo; levanta-te, és abençoado.
Com isto
levantou-se e entrou tremendo, e ainda do de estar dentro envergonhava-se de
mostrar seu rosto. Pois bem; depois de ter sido obsequiado ali algum tempo da
forma que já sabeis, disseram-lhe que prosseguisse seu caminho e foi-lhe
indicada a senda que havia de tomar. Assim andou até chegar a nossa casa, mas
como tinha se comportado fora da porta estreita, assim se comportou à porta de
meu senhor Intérprete. Ficou fora, no frio, muito tempo antes que cobrasse
valor para chamar; queria voltar, e precisamente então as noites eram mais e
mais frias. Levava em seu seio uma carta urgente, dirigida ao meu senhor,
encarecendo-o que o recebesse e obsequiasse, e também que lhe proporcionasse um
forte e valoroso guia, já que ele mesmo era tão medroso; e contudo, temia
chamar à porta. Assim sendo, andou o coitado vagando em volta da casa, até que
esteve quase morto de fome. Tão profundo era seu estado de abatimento, que não
podia decidir-se a chamar, embora visse alguns que com pedir somente a entrada
já eram admitidos. Por fim, olhando eu por uma janela e vendo um homem que
vagueava perto da porta, sai e lhe perguntei quem era; mas, pobre homem!, seus
olhos se arrasavam em lágrimas, e por isso adivinhei o que desejava. Entrei,
portanto, o manifestei na casa e fomos participá-lo ao nosso Senhor. Ele
enviou-me de novo a suplicá-lhe que entrasse, e bastante trabalho me custou.
Finalmente, acedeu às minhas súplicas e entrou; e, seja dito em honra de meu
Senhor, ele o tratou com um carinho e atenção maravilhosos. Poucos bocados
delicados havia sobre a mesa sem que se depositasse parte em seu prato. Então
apresentou a carta e meu senhor, tendo-a lido, disse que atenderia seus
desejos. Depois de algum tempo de estar ali, parecia que nosso homem cobrou
mais ânimo e se sentiu mais cômodo, pois devem saber que meu amo é muito doce e
compassivo, especialmente com os que são temerosos; por conseguinte, o tratou
da maneira que melhor contribuía a infundi-lhe confiança.
Quando houve
visto as curiosidades da casa e estava para continuar a viagem, meu amo lhe
deu, como antes a Cristiano, uma garrafa de licor e algumas coisas apetitosas
para comer. Empreendemos a marcha, vindo ele após mim; mas era homem de poucas
palavras, e tinha o costume de lançar fortes suspiros. Quando chegamos à forca
de que estavam pendurados aqueles três velhacos, disse que temia o alcançasse a
mesma sorte. No entanto, alegrou-se muito ao ver a cruz e o sepulcro; quis
permanecer ali uns momentos para contemplá-los, e durante algum tempo depois
pareceu algo animado. Ao chegar na colina Dificuldade, não vacilou em subi-la,
nem mostrou muito medo dos leões. Sua inquietude não era motivada por estas
coisas; o que lhe infundia medo era a dúvida que tinha de se seria aceito ao
terminar sua viagem.
O fiz
entrar no palácio Formoso antes do que teria desejado, e uma vez adentro, o
apresentei às donzelas da casa; porém sentia demasiado temor para desfrutar de
sua companhia. Seu anseio era estar sozinho, embora gostasse das pias
conversações, e amiúde se ocultava detrás do biombo para ouvi-los. Muito lhe
agradava também ver as coisas antigas e meditar nelas. Mais tarde disse que
havia encontrado especial prazer em estar nas outras duas casas, ou seja, na da
porta estreita e na de Intérprete, mas que não tinha se atrevido a perguntar
nada.
Saímos
do palácio Formoso e descemos pela ladeira do Vale da Humilhação; jamais vi um
homem descê-la melhor; não se importava de quão humilde fosse, com tal que
pudesse alcançar o fim da bem-aventurança. Parece-me que havia uma espécie de
simpatia entre ele e aquele vale, porque em toda sua peregrinação nunca o vi
mais contente e feliz que ali. Deitava-se no chão, abraçava a terra e ainda
beijava as flores que cresciam no vale. Levantava-se a cada manhã ao despontar
a madrugada, e se passeava por aqueles contornos.
Mas
quando chegamos à entrada do vale da Sombra-da-Morte, temi perdê-lo, não porque
tivesse inclinação a retroceder; isso o aborrecia sempre, mas estava como para
morrer de medo. "Oh, os fantasmas me pegarão! Serei preso pelos
demônios!", exclamava atemorizado; e eu não podia fazê-lhe acreditar o
contrário. Ali lançou tantos gritos, que temi que seus brados fossem causa de
algum ataque, mas uma coisa chamou-me muito a atenção, e foi que nem antes nem
depois vi o vale tão tranqüilo como em aquela ocasião. Acho eu que os inimigos
achavam-se então refreados por mandado especial do Senhor, quem havia-lhes
proibido agir até que Receoso tivesse atravessado.
Seria
demasiado cansativo contá-lo tudo; por isso me limitarei a um par de incidentes
mais. Ao chegar na Feira da Vaidade, achava eu que ele teria se batido com
todos os feirantes. Temia que nos matassem a pancadas, tão colérico ficou
contra suas loucuras. Na Terra-Encantada também mostrou-se muito cauteloso e
vigilante. Mas quando chegou ao rio onde não havia ponte, ficou de novo
sumamente abatido. "Agora —disse— perecerei afogado, e nunca poderei gozar
da vista daquele rosto pelo que tantas léguas viajei".
Ali
também me chamou a atenção uma coisa notável: a água do rio estava no mais
baixo nível que jamais vi, de forma que por fim o atravessou pouco menos que em
seco. Enquanto subia até a porta da cidade, comecei a despedir-me dele,
desejando-lhe um feliz recebimento.
—Sim que
o terei, não cabe dúvida —exclamou, e com isso nos separamos, e não voltei
vê-lo.
INTEGRIDADE—
Até que parece que no final saiu-se bem.
BOM
CORAÇÃO— Sim, eu nunca o duvidei; era homem de um espírito formoso, só que
sempre estava muito abatido, e isso fazia que sua vida fosse uma pesada carga
para ele mesmo, e incômoda para os outros. Sobre tudo, tinha a consciência
muito tenra. Temia até tal extremo prejudicar a outros, que com freqüência
privava-se do que era lícito para não fazê-los tropeçar.
Integridade—
Mas, qual pode ser a razão pela que um homem tão bom estivesse tão em trevas
durante toda sua vida?
BOM
CORAÇÃO— Uma das razões disto é que o Deus que todo sabe o deseja assim; alguns
tangem e outros lamentam. O senhor Receoso era um que tocava sempre o contrabaixo,
correspondendo-lhe, como aos outros de seu mesmo caráter, os instrumentos de
notas mais lúgubres, embora alguns opinem que o baixo é o fundamento da música.
Por minha parte, não dou nada por aquela profissão de piedade que começa com a
aflição de espírito. As primeiras notas toca o músico, quando deseja afinar um
instrumento, e assim também Deus, quando afina para si a alma de uma pessoa,
toca primeira esta corda. A imperfeição de Receoso consistia em que não soube
produzir outros sons musicais até estar já perto de seu fim (falo neste sentido
metafórico para contribuir ao desenvolvimento do engenho de meus jovens
leitores, e porque no livro do Apocalipse se compara os remidos a uma companhia
de músicos que, acompanhando-se com suas trombetas e harpas, entoam seus
cânticos diante do trono de Deus).
INTEGRIDADE—
Do que nos falaste depreende-se que era zeloso, um homem cheio de zelo; não
temia no mais mínimo às dificuldades, os leões, nem a Feira da Vaidade; o que
lhe infundia terror era o pecado, a morte e o inferno, porque abrigava algumas
dúvidas acerca do direito que tinha ao país celestial.
BOM
CORAÇÃO— Tens razão. Estas eram as coisas que lhe molestavam, e procediam, como
bem disseste, não de alguma fraqueza de espírito com respeito à parte prática
da vida de peregrinação, senão da fraqueza de seu ânimo acerca daquelas; podendo-se
assegurar que nenhum obstáculo físico tivesse podido desviá-lo de seu caminho;
mas nenhum pode sacudir com facilidade os temores experimentados por Receoso.
Cristiana—
Este relato acerca de Receoso me foi de grande utilidade, pois acreditava que
não tinha existido ninguém tão aflito como eu; mas vejo que as aflições
sentidas por este bom homem têm alguma semelhança com as minhas; somente nos
diferenciamos em duas coisas: suas penas eram tão graves que se declararam, mas
as minhas as guardei escondidas no coração. As suas também se agravaram, até o
ponto de impedi-lhe chamar às casas preparadas para nossa hospedagem; mas as
minhas eram tais que me obrigaram a chamar com maior força.
MISERICÓRDIA—
Para descarga de meu coração, devo manifestar que senti algo do mesmo espírito
que animava a Receoso; porque sempre temi mas o inferno e a perda de um lugar
no Paraíso que a perda de outras coisas. "Oh", dizia para mim,
"Que não daria eu para alcançar a felicidade de possuir uma morada ali,
embora para lográ-la tivesse que sacrificar o que mais aprecio neste
mundo!".
MATEUS—
O temor era a única coisa que me fazia acreditar que distava muito de possuir
em meu interior o que acompanha a salvação; mas se tudo isto lhe aconteceu a um
homem tão bom como ele, por que não esperar que no final eu também triunfe
completamente?
JAIME—
Sem temor não haverá graça. Embora não sempre há graça onde existe temor do
inferno, é verdade que onde não existe o temor de Deus também não existe a
graça.
BOM
CORAÇÃO— Bem falado, Jaime; deste no alvo: "O temor de Deus é o princípio
da sabedoria"; e por certo, os que não têm o princípio carecem também do
meio e do fim. Tomara que outras muitas pessoas se assemelhassem mais com
respeito a isto ao nosso amigo Receoso!
CAPÍTULO
14
Os
peregrinos ocupam-se de Teimoso em sua conversação. Chegam à pousada de Gaio.
Carinhoso recebimento que ali lhes fizeram.
Com as
palavras antes citadas, Bom Coração pôs termo a sua conversa sobre Receoso, mas
não por isso decaiu o diálogo. Integridade em seguida começou falar de outro
que se chamava Teimoso.
—Este
—disse o ancião— aparentava ser peregrino, mas estou persuadido que nunca
entrou pela porta estreita.
BOM
CORAÇÃO— Falaste com ele alguma vez sobre o particular?
INTEGRIDADE—
Sim, mais de cem vezes; mas seu caráter quadrava com seu nome: era sempre
voluntarioso. Não fazia caso das pessoas, nem de argumentos, nem de exemplos;
fazia o que bem entendia, e nenhuma persuasão podia com ele.
BOM
CORAÇÃO— Sem dúvida saberás e poderás nos dizer por que princípios se regia.
INTEGRIDADE—
Mantinha que a pessoa pode imitar os vícios o mesmo que as virtudes dos
peregrinos, e que, assim fazendo as coisas, certamente salvar-se-ia.
Bom
Coração— Como! Se tivesse falado que é possível que os melhores sejam culpados
de vícios, enquanto ao mesmo tempo podem participar das virtudes dos
peregrinos, não poderíamos contradizê-lo, porque não estamos absolutamente
isentos de nenhum vício, senão enquanto vigiemos e resistamos. Mas vejo que não
é isto o que ele queria dizer; se te compreendi bem, esse sujeito mantinha que
era lícito fazê-lo.
INTEGRIDADE—
Justamente; assim o cria e assim o praticava.
BOM
CORAÇÃO— mas Que fundamento tinha ph semelhante asserção?
INTEGRIDADE—
Dizia que tinha apóio nas Sagradas Escrituras.
BOM
CORAÇÃO— Te agradeceremos que nos expliques com maior detalhe.
INTEGRIDADE—
De todo coração. Dizia que ter trato com as mulheres de outros homens tinha
sido praticado por Davi, o amado de Deus, e por conseguinte ele podia fazê-lo;
que o ter pluralidade de esposas era o que Salomão havia praticado; logo, ele
podia seguir seu exemplo. Que Sara, as piedosas parteiras do Egito e Raabe, que
foi salva quando a toma de Jericó, mentiram, e ele tem o direito de fazer o
mesmo; que os discípulos foram por ordem de seu Senhor a roubar um jumento, o
qual lhe dava a ele licença para furtar; que Jacó logrou de seu pai a herança
por meio de fraude e dissimulo e que ele, em conseqüência, podia seguir com
impunidade o caminho do engano.
BOM
CORAÇÃO— Ruim e miserável! E estas seguro que sustentava tais opiniões?
INTEGRIDADE—
Ouvi-lo falar em defesa delas, alegar argumentos para prová-las e citar as
Escrituras em apóio delas.
BOM
CORAÇÃO— Tal opinião não é digna de crédito algum.
INTEGRIDADE—
Compreende bem: não dizia que todo homem pudesse fazer isto, mas sim que as
pessoas que possuíssem as virtudes dos que praticavam tais coisas tinham
licença para fazer o mesmo.
BOM
CORAÇÃO— Mas que conclusão tão falsa! Isto é o mesmo que se dissesse que, já
que algumas boas pessoas em tempo passado pecaram por causa de suas
debilidades, ele tinha por isso direito de fazer o mesmo. Com conhecimento e
presunçosamente, ou porque uma criatura, empurrada por uma rajada de vento, ou
por ter tropeçado com uma pedra, caiu e sujou com lodo, ele poderia de
propósito pular na lama e revolver-se nela como um javali, quem poderia
acreditar que alguém pudesse estar tão obcecado com a concupiscência? É verdade
o que está escrito: "tropeçam na palavra, sendo desobedientes; para o
que também foram destinados" [16]. Supor que os
que se entregam com total intuito aos vícios que caracterizaram alguns homens
piedosos, possam possuir suas virtudes, é também um desacerto tão grande como o
outro. É como se um cão dissesse: "Tenho ou posso ter as qualidades de uma
criança, porque devoro asquerosos excrementos". Cometer com premeditação
pecados do povo de Deus não é sinal de que alguém possua suas virtudes; nem
posso acreditar que uma pessoa que negue tal opinião possa ter fé em Deus ou
amor para Ele... Eu sei que refutaste suas idéias com algumas razões poderosas.
O que ele disse em sua defesa?
INTEGRIDADE—
Alegou que parece muito mais honorável fazer como resultado de crenças, que
fazê-lo a pesar de opiniões contrárias.
BOM
CORAÇÃO— Este arrazoamento é perverso em estremo; embora seja ruim dar
liberdade às paixões e à concupiscência, enquanto as opiniões o reprovam, o
pecar e alegar licença para fazê-lo é ainda pior. O primeiro faz tropeçar os
outros repentinamente, enquanto o segundo conduz, pela força de argumentos, à
armadilha que lhes está preparada.
INTEGRIDADE—
Existem muitos que são do mesmo parecer que esse malvado, mas não têm a mesma
falta de vergonha em manifestá-lo, e isto é o que desacredita tanto a vida de
peregrinação.
BOM
CORAÇÃO— Desgraçadamente, é verdade; mas quem teme o Rei do Paraíso sairá do
meio deles.
CRISTIANA—
Pelo mundo correm opiniões farto estranhas. Conheci um que dizia que haveria
tempo para arrepender-nos quando chegasse a hora da morte.
BOM
CORAÇÃO— Tais pessoas não são devidamente sabias. Se àquele homem tivesse-lhe
sido concedido o prazo de uma semana para correr sete milhas para salvar sua
vida, não teria desejado aprazar a carreira toda até a última hora da semana.
INTEGRIDADE—
Perfeitamente; porém, a maior parte dos que se intitulam peregrinos, em verdade
agem assim. Sou ancião, como podeis ver: faz muito tempo que sigo este caminho,
e já reparei em muitas coisas.
Vi
alguns saírem com tantos brios, que parecia que nada poderia sustentar-se
diante deles, e ainda assim, em poucos dias ficaram mortos como os israelitas
no deserto, e nunca chegaram a ver a terra da promessa.
Outros
vi que no princípio não prometiam nada, e poderíamos acreditar que não
perseverariam um único dia, mas no final chegaram a serem bons e fiéis
peregrinos. Vi alguns que começaram a correr apressadamente para a vida, e que
depois de um tempo voltaram para atrás com a mesma precipitação.
Conheci
alguns que de boas a primeiras falavam muito bem da vida de peregrinação, e
pouco tempo depois não poderiam ter falado pior dela.
Ouvi
alguns, ao empreenderem sua viagem para o Paraíso, afirmarem positivamente que
tal lugar existe, e os mesmos, quando já faltava-lhes pouco para alcançá-lo, voltarem
negando sua existência.
A outros
ouvi fazer alarde do que fariam, caso encontrarem oposição, e ainda assim, por
um falso alarme deram por terra com sua fé, com a vida de peregrino e com tudo.
Enquanto
assim falavam nossos peregrinos, chegou um correndo ao seu encontro, e gritando:
—Senhores,
se apreciam vocês suas vidas, coloquem-se a salvo que os ladrões estão na
frente!
—Serão
os três que em outra ocasião assaltaram a Pouca-Fé —disse o guia—; mas que
venham, já estamos preparados.
E
continuaram seu caminho, olhando para todas partes se por caso dessem com
aqueles canalhas; mas fosse porque eles tivessem ouvido falar de Bom Coração,
ou porque estavam em busca de outra presa, não incomodaram os viajantes com sua
presença. Neste ponto Cristiana manifestou desejos de encontrar uma pousada
para ela e seus filhos, porque se sentiam fatigados.
—Há uma
um pouco mais adiante —disse Integridade—, onde mora um discípulo honesto,
chamado Gaio.
Com esta
notícia decidiram todos dirigir-se para lá, tanto mais quanto o ancião falava
também dela. Chegados à casa, entraram sem chamar, porque não é costume bater
na porta de uma pousada. Indagaram pelo dono, e quando este apareceu,
perguntaram-lhe se poderiam hospedar-se ali naquela noite.
—Sim,
senhores —respondeu Gaio—, se sois pessoas retas; a minha casa somente serve de
albergue para peregrinos.
Alegraram-se
ainda mais Cristiana, Misericórdia e os rapazes, ao saber que o hospedeiro
queria e respeitava os peregrinos. Então pediram habitações, e pronto estavam
todos comodamente alojados.
Depois perguntou
o guia:
—Bom
Gaio, o que tens para jantar? Estes peregrinos vêm de longe e estão cansados.
GAIO— É
tarde já, de modo que não podemos sair a comprar, mas o que temos em casa está
a vossa disposição, se vos basta.
BOM
CORAÇÃO— Estaremos contentes com o que tens em casa, porque sei por experiência
própria que nunca te falta o que é conveniente.
Seguidamente
desceu o hospedeiro a dar ordens ao cozinheiro, que se chamava Cata-o-Bom, para
que preparasse o jantar para tantas pessoas. Feito isto, subiu de novo, e
disse-lhes:
—Agora,
bons amigos, bem-vindos sejais; e alegro-me de ter casa para oferecer-vos. Se
vos apraz, enquanto estão preparando o jantar, nos entreteremos com boa
conversação.
A uma
voz deram os hóspedes a entender que estavam conformes.
GAIO—
Esta matrona, de quem é esposa? E esta donzela, de quem é filha?
BOM
CORAÇÃO— A senhora era esposa de um tal Cristiano, peregrino de outro tempo:
estes são seus quatro filhos. A moça é uma de suas conhecidas, a quem
persuadiram que os acompanhe. Os filhos seguem o exemplo do pai e anseiam
perseverar no mesmo caminho; sempre que vêem algum lugar onde o ancião
peregrino deitou-se, ou descobrem alguma que outra de suas pegadas,
regozijam-se e sentem o desejo de deitarem no mesmo lugar ou pôr seus pés na mesma
pisada.
GAIO—
Esta é a esposa de Cristiano! E estes são seus filhos! Pois conhecia o pai de
teu marido, e também seu avô. Muitos desta estirpe foram virtuosos; seus
antepassados viviam primeiro em Antioquia. Os progenitores de Cristiano (não
duvido que tenhas ouvido falar deles), pessoas muito apreciáveis. Estes, por
acima de quantos tenho conhecido, destacaram-se em virtude e valor, sendo fiéis
ao Senhor dos peregrinos, às suas veredas e aos que O amavam. Tenho ouvido de
muitos dos parentes de teu marido que suportaram toda classe de provas por amor
da verdade. Estevão, que era um dos primeiros desta linhagem, foi apedrejado;
Tiago, outro da mesma linhagem, foi morto pelo fio da espada; e por não dizer
nada de Paulo e Pedro, que também eram desta ascendência. Houve Inácio, que foi
jogado aos leões; Romano, cuja carne foi-lhe arrancada pouco a pouco dos ossos,
e Policarpo, que se manteve valente em meio das chamas. Houve um que foi
colocado num saco de couro e pendurado ao sol para ser devorado pelas vespas, e
outro que, encerrado também num saco, foi jogado no mar, e afogou-se. Seria de
nunca acabar enumerar os que daquela família padeceram ultrajes e martírios por
amor da vida de peregrino. Espero que mantenham a honra do nome do pai, que
seguirão suas pegadas e que alcançarão o mesmo fim que ele.
BOM
CORAÇÃO— Pois sim; são jovens que prometem muito; que de coração têm decidido
seguir seu pai.
GAIO— O
falado, falado está! Por isso é provável que a família de Cristiano se esparja
sobre a face da terra, e chegue a ser muito numerosa; por tanto convém que
Cristiana escolha donzelas para seus filhos, com as que possam serem desposados
"para que o nome do falecido não seja desarraigado dentre seus irmãos e
da porta do seu lugar" [17].
INTEGRIDADE—
Seria uma pena que esta família decaísse e se extinguisse.
GAIO— É
impossível que pereça, porém poderia minguar; que Cristiana aceite meu
conselho, esse é o modo de sustentá-la. —Então, dirigindo-se a Cristiana,
prosseguiu—: Me alegro de ver-te aqui com tua amiga Misericórdia, bonita
companhia. Se me permites aconselhar-te, estreita ainda mais tuas relações com
esta jovem, e se ela consente nisso, que seja desposada com Mateus, teu filho
mais velho. Esta é a forma de conservar posteridade na terra.
O
conselho de gaio caiu-lhes em graça; efetuaram-se as núpcias e, andando o
tempo, os jovens foram unidos em matrimônio; mas disto trataremos mais adiante.
—Agora —
prosseguiu Gaio—, falarei em favor das mulheres para tirá-lhes seu opróbrio.
Assim como a morte e a maldição entraram no mundo por meio de uma mulher, assim
também a vida e a saúde. "Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher" [18]. E ainda mais
se demonstra que as que viram depois dela aborreceram o que fora feito por
nossa comum mãe, quanto a que este sexo, em tempos do Antigo Testamento,
desejava ter filhos, se por acaso esta ou aquela pudesse ser a mãe do Salvador
do mundo.
Quando
finalmente veio o Salvador, as mulheres se regozijaram nEle antes que homem ou
anjo. Não vejo que homem algum tenha dado a Cristo nem sequer um centavo; porém
as mulheres o seguiram servindo-o de suas fazendas. Foi mulher quem lavou seus
pés com lágrimas, e uma mulher também ungiu seu corpo antecipadamente para seu
sepultamento. Foram mulheres as que choraram quando o levaram para o suplício, e
mulheres as que o seguiram desde a cruz e se sentaram junto ao seu sepulcro
quando foi enterrado. As primeiras que estiveram com Ele na manhã da
Ressurreição foram mulheres, e mulheres também as que primeiro levaram aos
discípulos a notícia de que Ele havia ressuscitado. As mulheres, portanto, são
altamente abençoadas, e se vê por estas coisas que participam conosco da graça
da vida.
Entretanto,
o cozinheiro mandou avisar que o jantar estava pronto, e veio um doméstico para
colocar a toalha de mesa e preparar tudo.
A vista
desta toalha de mesa —disse Mateus— e destes preparativos do jantar me abrem o
apetite.
GAIO—
Assim todas as doutrinas e ministros devem engendrar em ti nesta vida mais
vivos desejos de participar da do grande Rei em seu reino; pois a predicação,
os livros e demais não são senão o colocar sobre a mesa a louça, os
preparativos da comida, em comparação do que o Senhor nos fará quando cheguemos
a sua casa.
Em
seguida serviu o jantar. Em primeiro lugar colocaram diante deles lombo (como o
que antigamente se entregava em oferta a Deus) e um peito (que lhes lembrava o
peito que se agitava diante do Senhor), dando a entender que deviam dar
princípio à comida com oração e louvor, seguindo o exemplo de Davi, quem
costumava elevar seu coração a Deus e celebrar suas graças com a harpa. Estes
dois pratos eram frescos e bons, e todos comeram bem deles.
Depois
trouxeram uma garrafa de vinho, vermelho como o sangue.
—Podeis
beber disto sem reservas —disse Gaio—; é o produto da vide verdadeira, o qual
alegra a Deus e aos homens.
Beberam,
pois, e se regozijaram.
Seguidamente
apresentaram um prato de leite com pão.
—Que os
rapazes tomem isto —disse Gaio—, para que cresçam em saúde.
Depois
disto foi-lhes trazida manteiga e mel.
—Comei
liberalmente disto —disse o hospedeiro—; é bom para animar e fortalecer vosso
juízo e discernimento. Esta era a comida de nosso Senhor quando criança: "Manteiga
e mel comerá, quando ele souber rejeitar o mal e escolher o bem" [19].
Ao verem
que traziam um prato de fruta da época e de bom sabor, Mateus perguntou se era
lícito comer dela, pois foi com ela que seduziu a serpente a nossa primeira
mãe.
Ao qual
respondeu Gaio:
Com as
maçãs fomos enganados,
Mas a
culpa, não o fruto, nos reprova;
Os
frutos danificam, quando vedados;
Comer o
não proibido é coisa boa.
Come,
Igreja, os frutos regalados,
O vinho
bebe, que de gozo cheia;
E se,
enferma de amor, estás prostrada,
Pronto
sentir-te-ás corroborada.
Mateus—
Manifestei meu escrúpulo porque faz um tempo cai doente por ter comido fruta.
Gaio—
Digo e repito que a fruta proibida te fará mal, não a que o nosso Senhor
permite.
Enquanto
assim falavam, colocaram diante deles um prato de nozes. À vista delas, alguns
disseram:
—As
nozes estragam os dentes, especialmente os das crianças.
Gaio,
ouvindo a observação, dissipou o receio, dizendo:
O texto
dificultoso
É com a
noz parecido:
A dura
casca impede
Chegar
ao fruto escondido;
Mas se
quebrar a casca,
Já pode
ser comido.
Reinava muita
expansão entre os hóspedes, e permaneceram largo tempo à mesa, entretendo-se em
agradáveis discursos.
—Bom
senhor —disse então o ancião Integridade—, enquanto estamos descascando nossas
nozes, vejamos se decifras este enigma:
Um homem
a quem por louco se temia,
Tanto
mais rico estava
Quanto
mais repartia.
Esperaram
todos com atenção para ver qual seria a resposta de Gaio. Depois de um momento
de silêncio, disse:
Quem de
seus bens aos pobres dá,
De novo,
e com aumento, receberá.
José
ficou admirado de que tão facilmente tivesse acertado.
—Oh!
—exclamou Gaio— Desde muito tempo atrás fui instruído nestas matérias; nada
ensina como a experiência. De meu Senhor aprendi a ser benigno e generoso, e
sempre achei que deste modo o ganho esteve de meu lado. "Alguns repartem,
e lhes é agregado mais; outros são escassos mais do que é justo, e chegam à
pobreza". "Alguns ficam ricos, e não têm nada, e outros se fazem
pobres, e têm muitas riquezas".
SAMUEL
(no ouvido da mãe)— Mãe, esta é a casa de um mui bom homem, fiquemos aqui um
bom espaço de tempo, e que meu irmão Mateus case com Misericórdia antes que
vamos mais longe.
—De boa vontade, filho —respondeu Gaio, que
havia ouvido a conversação.
Ficaram,
portanto, de acordo, e permaneceram ali mais de um mês, em cujo intervalo
efetuou-se o casamento. Misericórdia, durante este tempo, não deixou de fazer,
como era seu costume, roupa e vestidos para os pobres, por cujas prendas
contribuiu à boa reputação de que gozavam os peregrinos. Mas voltemos ao nosso
relato.
Concluído
o jantar, os rapazes quiseram retirar-se, sentindo-se muito fatigados pela
viagem. Assim, pois, foram conduzidos ao quarto que estava-lhes destinado, e
dormiram tranqüilamente até a manhã. Mas os outros velaram durante toda a
noite, porque o hospedeiro e os hóspedes achavam tanto prazer em sua mútua
companhia que não sabiam como separar-se. Depois de muita conversação acerca de
seu Senhor, de si mesmos e de sua viagem, o ancião Integridade começou a dormitar.
—Como!
—disse Bom Coração— Estás sonolento? Vamos, acorda: aqui tens um enigma.
INTEGRIDADE—
Ouçamos.
Então
disse Bom Coração:
Deve ser
antes vencido
Aquele
que queira vencer,
E morrer
dentro de casa,
Se vivo,
fora, há de ser.
Integridade—
Certamente é um enigma difícil; difícil de explicar, e ainda mais de pôr em
prática. Se desejas, senhor Gaio, deixar-te-lo-ei; explica-o, e de boa vontade
te ouvirei.
GAIO—
Não, que o enigma foi proposto a ti, e de ti deve provir a resposta.
Então
disse Integridade:
Deve ser
pela graça vencido
Quem
deseje o pecado vencer;
E deverá
morrer para si mesmo
Quem a
vida deseje ter.
GAIO—
Tens razão; a boa doutrina e a experiência ensinam isto. Porque, primeiro, até
que se manifeste a graça e com sua glória vença a alma, é de pouca utilidade
resistir o pecado; além disso, como o pecado é a corda de Satanás com a que
tens ligada a alma, como pode esta opor-se antes que seja libertada desta
doença? E segundo, ninguém que conheça ou a razão ou a graça acreditará que o
homem que é escravo de suas próprias paixões seja um monumento vivo da graça
divina.
E agora
que penso, vou contar-vos uma história que merece a pena ser ouvida. Dois
homens iam em peregrinação; um começou sendo ainda jovem, o outro quando já era
ancião. O jovem teve que agüentar uma luta contra fortes corrupções; as paixões
do ancião estavam debilitadas pela decadência da natureza. O jovem marchava com
passo tão firme e tão ligeiro como o velho. Em qual dos dois resplandecia mais
claramente a graça, sendo que ambos pareciam iguais?
INTEGRIDADE—
No jovem, sem dúvida, porque quem enfrenta maior oposição demonstra melhor que
é o mais forte, especialmente quando corre parelho com aquele que não encontra
nem a metade da resistência, como seguramente acontece com a velhice. Além
disso, notei que freqüentemente os anciãos se congratulam de um erro, quer
dizer, que tomam a decaída da natureza por uma conquista sobre suas corrupções,
e assim tem-se enganado. Naturalmente, os anciãos que possuem a graça divina
são os que melhor podem aconselhar os jovens, porque viram a vaidade das
coisas. Porém, quando um ancião e um jovem empreendem juntos o caminho, este
último tem a vantagem do mais luminoso descobrimento de uma obra de graça em
sua alma, embora as paixões daquele sejam mais fracas.
CAPÍTULO
15
Bom
Coração capitaneia uma expedição contra o gigante Mata-o-Bom. Morte do gigante
e resgate de Fraca-Mente, em quem vemos o que podem a determinação e a
constância a despeito das fraquezas normais. Encontro com Prestes-A-Coxear,
quem se une aos outros peregrinos. A marcha retomada.
A aurora
achou os peregrinos ainda entregues às doçuras da conversação. Quando a família
estava já levantada, Cristiana disse a seu filho Jaime que lesse um capítulo da
Bíblia. Ele escolheu o capítulo 53 de Isaias. Acabada a leitura, Integridade
perguntou por que se dizia que o Salvador era "como raiz de uma terra
seca", e também o que queria dizer a frase "não havia boa
aparência nele, nem beleza" [20].
BOM
CORAÇÃO— Ao primeiro contesto que seria porque a igreja dos judeus de que
descendia Jesus, havia naquele então perdido quase toda a seiva e espírito da
religião; quanto ao segundo, as palavras são como pronunciadas pelos
incrédulos, os que, faltos da visão espiritual com que olhar dentro do coração
de nosso Príncipe, julgam dEle segundo o áspero de sua aparência externa como
os que, ignorando que as pedras preciosas estão cobertas de uma tosca crosta,
ao acharem uma e não sabendo seu valor, a jogam fora como se fosse uma pedra
ordinária.
—Agora
bem —disse Gaio—; já que estais aqui, e sendo que Bom Coração tem muita
destreza no uso das armas, depois de um pequeno refrigério, se não tendes
inconveniente, sairemos ao campo para ver se podemos fazer algum bem. A coisa
de uma meia légua daqui há um gigante, chamado Mata-o-Bom, que comete muitas
maldades neste pedaço do caminho real, e sei onde tem a sua guarida. É chefe de
uma quadrilha de ladrões. Seria bom se pudéssemos desembaraçar esta comarca
dele.
Consentiram
nisso e, saindo, Bom Coração com sua espada, elmo e escudo, e o resto com
lanças a paus.
Encontraram
o gigante com um tal de Fraca-Mente entre suas mãos, a quem os seus subalternos
havia apreendido pelo caminho e o haviam trazido. O gigante ocupava-se em
despojá-lo de quanto tinha, com o propósito de comê-lo depois, pois era da raça
dos antropófagos.
Vendo a
Bom Coração e seus amigos na entrada da caverna, os interpelou, perguntando o
que queriam.
BOM
CORAÇÃO— É a ti a quem buscamos; viemos vingar os muitos peregrinos que mataste
depois de tê-los afastado do caminho real; portanto, sai da toca.
O gigante armou-se no ato e saiu. Os dois se
bateram durante uma hora ou mais, e então se detiveram um pouco para retomar o
alento.
—Por que
vens ao meu território? —rosnou o gigante.
BOM
CORAÇÃO— Para vingar o sangue dos peregrinos, como já te disse.
Recomeçou
o combate, e o gigante fez ceder um pouco a Bom Coração; porém este arremeteu
de novo, e com sua costumeira valentia fez chover tão fortes golpes sobre a
cabeça e os flancos de seu adversário, que o obrigou a soltar a arma; então,
aproveitando a vantagem, investiu novamente e o matou, cortando-lhe a cabeça, a
que levou à pousada. Tomou também o peregrino Fraca-Mente, e o levou com ele ao
alojamento. Ao chegar lá na casa, mostraram a cabeça do gigante à família, e
logo a penduraram, como anteriormente haviam feito com as outras, para
escarmento de quantos no sucessivo tentaram fazer o mesmo.
Sendo
que já estava a salvo, interrogaram a Fraca-Mente para que contasse como havia
caído em tais mãos.
—Sou
homem doentio, como vedes —disse—, e como a morte costumava bater todos os dias
na minha porta, pensei que nunca estaria bem em casa; por isso me dei à vida de
peregrinação, e vim para cá desde o povo da Indecisão, de onde sou natural, o
mesmo que meu pai. Não tenho forças de corpo nem de mente; mas embora não possa
mais que arrastar-me, desejaria passar minha vida nesta senda. Quando cheguei à
porta que dá entrada a este caminho, o senhor daquele lugar tratou-me com muita
liberalidade; também não opôs reparos a minha aparência enfermiça nem a minha
fraca mente, mas facilitou-me o necessário para a viagem, e me disse que
tivesse b ânimo até o fim. Também fui objeto de muitos obséquios na casa de
Intérprete, e porque consideravam que o desfiladeiro Dificuldade fosse
demasiado áspero para mim, um de seus criados subiu-me em suas costas. Tenho
recebido muita ajuda de parte de outros peregrinos, ainda que nenhum deles
consentisse em avançar tão lentamente como eu me vejo obrigado a viajar; porém,
quando me alcançavam se detinham para animar-me, dizendo ser a vontade do
Senhor que se desse consolo aos de pouco ânimo, e depois apertavam o passo.
Continuei andando até chegar no caminho do Assalto, e ali cai nas mãos deste
gigante. Disse-me que me preparasse para combater com ele mas eu, pobre de
mim!, antes bem tinha necessidade de um licor. Então se apoderou de mim, mas eu
estava convencido que não me mataria; mais tarde também, quando já tinha me
levado a sua guarida, já que fui com ele contra a minha vontade, abriguei a
certeza de que sairia com vida, porque tenho ouvido dizer que nenhum peregrino
cativado à força pode morrer nas mãos do inimigo, sempre que mantenha um
coração reto para seu Senhor, o que é uma das leis da Providência. Esperava ser
seqüestrado, e efetivamente, o fui; mas, como vedes, escapei com vida, e dou
graça a meu Rei como autor do meu resgate, e a vós outros como o médio dele.
Não acredito que este seja o último desastre que vai me acontecer, mas a uma
coisa estou resolvido, isto é, a correr enquanto possa; e quando já não possa
correr, caminharei devagar; e quando isto me seja impossível me arrastarei,
pois em quanto ao essencial, graças Àquele que me ama, estou decidido. Diante
de mim se estende o meu caminho, e embora seja de fraca mente, tenho a vista
colocada no país além do rio que não tem ponte.
INTEGRIDADE—
Não conheceste, algum tempo atrás, um certo sujeito que se chamava Receoso?
FRACA-MENTE—
Sim que o conheci. Vinha do povo de Estupidez, que se encontra a muitas léguas
ao norte da cidade de Destruição e a outras tantas de meu povo nativo. Apesar
disto, éramos muito conhecidos e parentes, por ser ele meu tio por parte de meu
pai. Quanto a parte moral, fomos muito parecidos, e no físico também tínhamos o
mesmo semblante, ainda que ele fosse um pouco mais baixo do que eu.
INTEGRIDADE—
Não duvido que o conhecesses, e também posso facilmente acreditar que tenham sido
parentes, porque tens a mesma palidez no rosto; és vesgo, como ele, e o teu
sotaque é muito parecido com a seu.
FRACA-MENTE—
Quase todos os que nos conheceram aos dois têm falado a mesma coisa; além
disso, o que reparei nele o achei, geralmente, em mim mesmo.
GAIO—
Tem bom ânimo, amigo; bem-vindo sejas. Estamos a tua disposição, e poder pedir
o que desejes; criados também estarão às tuas ordens para servir-te de boa
vontade.
FRACA-MENTE—
Este é um favor inesperado, como quando o sol deixa ver seu resplendor depois
de permanecer oculto trás de uma espessa nuvem. Acaso queria o gigante
Mata-o-Bom proporcionar-me este favor, quando me deteve e chegou a deixar-me
continuar meu caminho? Queria, por ventura, que depois de roubado viesse eu à
casa de "Gaio, meu hospedeiro" [21]? Pois assim é.
Fraca-Mente
e Gaio estavam assim falando, quando naquele momento chegou um a toda pressa, e
chamando à porta, comunicou-lhes a notícia de que, a curta distância da casa,
um raio havia convertido em cadáver um peregrino chamado Errado.
—Ah, que
desgraça! —exclamou Fraca-Mente— Alcançou-me alguns dias atrás, e queria andar
em minha companhia. Estava também comigo quando o gigante Mata-o-Bom me
capturou, mas, ligeiro de pés como era, fugiu; segundo parece, escapou para
morrer, enquanto que a mim me aprisionaram para que vivesse.
Estando
ainda nossos peregrinos na pousada, efetuou-se o concertado matrimônio entre
Mateus e Misericórdia. Gaio também deu sua filha Febe a Jaime para esposa. Depois
disto, permaneceram todos uns dez dias naquela casa hospitaleira, passando o
tempo à maneira habitual dos peregrinos.
Antes de
partir, Gaio os obsequiou com um suntuoso festim de despedida. Por fim, chegou
a hora da partida e, querendo Bom Coração satisfazer a conta do hospedeiro, este
deu-lhe a entender que em sua casa não era costume que os viajantes pagassem
sua manutenção; os tomava como pupilos, e esperava receber seu pagamento do bom
Samaritano, quem havia-lhe prometido que ao seu retorno lhe pagaria quantos
gastos tivessem lhe ocasionado.
—Amado
—disse Bom Coração—, te comportas com fidelidade em tudo quanto fazes com os
irmãos, e particularmente com os peregrinos, e deram testemunho de tua caridade
na presença da Igreja; aos quais, se encaminhares, segundo Deus, farás bem.
Gaio
logo se despediu deles, de seus filhos e com um carinho especial, de
Fraca-Mente. A este também lhe prestou auxílios para que se confortasse durante
o caminho.
Este
último, quando saíram os outro, fez como se fosse permanecer; porém, vendo-o
Bom Coração, disse-lhe:
—Vem
conosco, senhor Fraca-Mente; vem, que eu serei teu guia e te tratarei como aos
outros.
FRACA-MENTE—
Ah! Necessito um companheiro de minha condição: vós são todos fortes e
robustos; mas eu, como vedes, sou fraco; prefiro, pois caminhar detrás, não
seja que por uma de minhas muitas fraquezas chegue a ser-vos gravoso a vós
outros e a mim mesmo. Digo que sou de um ânimo fraco e débil; e o que outros
podem suportar bem a mim fadiga e cansa. Não gosto de rir, tenho aversão pelos
vestidos lúcidos; todo assunto que não seja de proveito me desgosta. Em
verdade, tão fraco sou que o que os outros tem liberdade de fazer me
escandaliza. Ainda não conheço toda a verdade. Sou um cristão muito ignorante;
às vezes, quando escuto os outros gozar-se no Senhor, me aflijo porque não
posso fazer o mesmo. Acontece comigo como com um homem fraco entre os forte, ou
como um doente no meio de pessoas sadias, de forma que não sei bem o que fazer.
BOM CORAÇÃO—Mas, irmão, tenho o encargo de "consolar
os de ânimo curto e suportar os fracos". É preciso que venhas conosco; já
acomodaremos nosso passo ao teu, te prestaremos nosso auxilio; por amor de ti
nos negaremos muitas coisas, assim em opiniões como na prática; também não
entraremos em discussões na tua frente, faremos todo para ti, antes de ver-nos
obrigados a deixar-te atrás.
Tudo
isto aconteceu estando na porta mesma de Gaio, e enquanto estavam no mais vivo
da conversação, um tal de Prestes-A-Coxear, com suas muletas nas mãos, acertou
passar; também ele ia em peregrinação.
—Homem —disse-lhe
Fraca-Mente—, o que te traz por aqui? Precisamente estava me queixando por não
ter companheiro de minha própria índole; mas tu vens a pedir de boca; mil vezes
bem-vindo, bm senhor Prestes-A-Coxear; espero que servir-nos-emos de recíproca
ajuda.
PRESTES-A-COXEAR—
Alegrar-me-ei em tua companhia, e antes que nos separemos, já que tão
felizmente nos encontramos, emprestar-te-ei uma de minhas muletas.
FRACA-MENTE—
Obrigado, aprecio em muito tua boa vontade; mas não estou para coxear antes de
ser coxo. Contudo, poderia ser-me útil em alguma ocasião para defender-me
contra um cão.
PRESTES-A-COXEAR—
Se eu e as minhas muletas podemos servir-te em algo, estamos ambos a tua
disposição.
E assim
dizendo, puseram-se em caminho.
CAPÍTULO
16
Os
peregrinos chegam à Feira da Vaidade, onde encontram albergue na casa de Mnáson;
agradável trato tiveram com alguns cristãos do povo. Escaramuça com um mostro
que devastava a comarca.
Empreendida
a marcha, os viajantes continuaram seu caminho na ordem seguinte: primeiro iam
Bom Coração e Integridade; depois vinham Cristiana com seus filhos, e detrás de
todos andavam Fraca-Mente e Prestes-A-Coxear com suas muletas. Então deu
Integridade princípio à conversação seguinte:
—Já que
estamos outra vez em viagem, conta-nos por favor algo dos que levaste antes que
nós pelo mesmo caminho.
BOM
CORAÇÃO— De bom grado. Já terás ouvido falar do encontro que teve Cristiano com
Apolião no Vale da Humilhação, e com quantos perigos e dificuldades tropeçou no
vale da Sombra-da-Morte. Também não ignorarás quão irado ficou Fiel, tendo que
opor-se às superstições da senhora Sensualidade, Adão-Primeiro,
Descontentamento e Pejo, quatro dos velhacos mais malandros com que alguém pode
tropeçar em todo o caminho.
INTEGRIDADE—
Sim, disso eu soube; parece que foi com Pejo com quem se encontrou Fiel em
maior aperto; ele o acossava sem dar-lhe trégua.
BOM
CORAÇÃO— É verdade; e, como bem disse Fiel, ele era, de todos os homens, quem
tinha um nome que menos lhe quadrava [22].
INTEGRIDADE—
Em que parte foi onde Cristiano e Fiel se encontraram com Loquaz? Este também
era um charlatão de primeira.
BOM
CORAÇÃO— Era um néscio, inchado de vã confiança; contudo, muitos seguem suas
pegadas.
INTEGRIDADE—
Faltou pouco para que seduzisse a Fiel.
BOM
CORAÇÃO— Sim, mas Cristiano indicou-lhe a maneira de descobrir de uma vez seu
verdadeiro caráter.
Nestas
conversas andaram até que observou Bom Coração:
—Por
aqui foi onde o Evangelista saiu ao encontro de Cristiano e Fiel, e
predisse-lhes os trabalhos que deveriam suportar na Feira da Vaidade.
INTEGRIDADE—
De veras? Parece-me que os advertiu que seria difícil ouvi-lo sem soçobra.
BOM
CORAÇÃO— Tens razão; mas ao mesmo tempo seu bom amigo não deixou de
infundi-lhes ânimo. Mas, o que estamos falando deles? Eram dois homens com o valor
do leão e uma resistência a toda prova; não lembras de quão impávidos
compareceram diante do juiz?
INTEGRIDADE—
Com quanto heroísmo padeceu Fiel!
BOM
CORAÇÃO— Verdade, e seus padecimentos originaram novos atos heróicos, pois
disse-se que Esperança e alguns outros converteram-se a causa de sua morte.
INTEGRIDADE—
Continua com teu relato, que gosto de ouvi-lo, e estás bem à par desses
sucessos.
BOM
CORAÇÃO— De todos quantos Cristiano encontrou depois de ter atravessado a Feira
da Vaidade, o mais infame foi Interesse-Próprio.
Integridade—
Interesse-Próprio! Quem era ele?
Bom
Coração— Um malandro consumado, um soleníssimo hipócrita. Um que a todo trance
queria ser religioso; mas era astuto, e procurava não perder nem sofrer nada
por causa de sua religião. Tinha sua crença apropriada para cada ocasião que se
lhe oferecia, e sua mulher tinha tanta destreza no ofício como ele. Mudava de
opinião em opinião, dando giros como o cata-vento, e além disso aconselhava os
outros a imitá-lo. Mas, segundo tenho entendido, seus interesses privados o
conduziram a um triste fim, e também não ouvi dizer que nenhum de seus filhos
tenha jamais ganho o respeito ou a estimação dos que de verdade temem a Deus.
Nisto,
chegaram à vista do povo de Vaidade, onde se encontrava a Feira. Vendo os
peregrinos que estavam tão perto do povo, tomaram conselho entre si do melhor
modo de atravessá-lo. uns diziam uma coisa e outros, outra, até que no final
Bom Coração tomou a palavra, e disse que, tendo passado repetidas vezes por
aquele povoado no desempenho de seu ofício, tinha a fortuna de conhecer um
ancião discípulo, natural de Chipre, chamado de Mnáson, em cuja casa poderiam
hospedar-se.
—Se vos
parece bem —disse—, dirigiremos nossos passo para lá.
—Conforme
—disseram todos a uma.
Tinha
escurecido quando chegaram nas redondezas do povoado, mas Bom Coração conhecia
o caminho. Assim que o ancião Mnáson ouviu a voz do guia que o chamava, a
reconheceu, e abrindo a porta, os peregrinos entraram na casa.
—De onde
vindes hoje? —perguntou-lhes.
—Da casa
de nosso amigo Gaio —responderam.
MNÁSON—
Bom trecho de caminho tendes feito; bem podeis estar cansados. Assentai-vos.
BOM
CORAÇÃO— Vamos, amigos, como estais agora? Me atrevo a dizer que meu amigo
regozija-se com vossa chegada.
MNÁSON—
Efetivamente, vos dou as boas-vindas; todo quanto desejeis, pedi-lo, e faremos
o possível para comprazer-vos.
INTEGRIDADE—
O que nos fazia grande falta, poço tempo atrás, eram albergue e boa companhia,
e agora nos felicitamos de termos ambas as coisas.
MNÁSON—
Quanto ao albergue, já vedes o que é; mas no que toca à boa companhia, isso
ver-se-á na prova.
Por
instigação do guia, Mnáson conduziu os viajantes a suas respectivas habitações;
ao mesmo tempo mostrou-lhes um comedor bastante cômodo, onde podiam jantar e
ficar juntos até a hora de retirar-se.
Estando
outra vez reunidos, e sentindo-se repostos das fadigas da marcha, Integridade
perguntou ao patrão se havia muitas pessoas piedosas no povoado.

MNÁSON—
Existem algumas, ainda que poucas em comparação dos que pertencem ao outro
partido.
INTEGRIDADE—
Como nos arranjaremos para ver alguns deles? Aos que peregrinam, a vista de
pessoas piedosas é como a aparição da lua e das estrelas para os navegantes.
MNÁSON—
bateu o chão com seu pe, e subiu sua filha Graça.
—Vai,
Graça —disse-lhe—, e dize aos meus amigos Contrito, Varão-Santo, Amor-pelos-Santos,
Não-Mentir e Penitente, que em casa tenho alguns amigos que desejam vê-los.
Estes
acudiram em seguida, a convite de Graça, e trocadas as saudações, sentaram-se
todos juntos à mesa.
MNÁSON—
Vede aqui, vizinhos meus, uma companhia de forasteiros que vieram pousar em
minha casa. São peregrinos que vêm de muito longe, e se dirigem para o monte
Sião. —E agregou indicando a Cristiana— Quem pensais que é? É a Cristiana,
viúva de Cristiano, aquele peregrino famoso que, junto que seu irmão Fiel, foi
tão vilmente afrontado neste povoado.
Assombrados
ficaram os visitantes ao ouvir isto, e disseram:
—Longe
estávamos de sonhar em ver à Cristiana quando Graça veio nos chamar; esta é uma
surpresa sumamente agradável.
Então a
interrogaram pela sua saúde, e pela dos filhos de Cristiano. Recebendo uma
resposta positiva, disseram:
—O Rei a
quem amais e servis vos faça como a vosso pai, e vos conduza em paz aonde ele
está.
Depois
Integridade perguntou a Contrito e aos outros em que estado se encontrava
naquele momento seu povo.
CONTRITO—
Podes ter certeza que estamos bastante afanados nesta época de feiras, pois
custa muito guardar nosso coração e espírito em bom estado durante a buliçosa
temporada. Quem mora num lugar como este e tem que tratar com pessoas como os
nossos vizinhos e concidadãos, tem a necessidade de vigiar em todo momento.
INTEGRIDADE—
São tranqüilos vossos vizinhos?
CONTRITO—
São muito mais moderados do que antes eram, já sabes como trataram a Cristiano e
Fiel; agora não cometem tantos excessos. Parece-me que o sangue de Fiel
foi-lhes até o presente uma pesada carga, porque desde que o queimaram tiveram
demasiada vergonha para repeti-lo em outros. Naqueles tempos tínhamos medo de
passear nas ruas, mas agora podemos assomar a cabeça. Então o nome de um que
professava a piedade era odioso; agora, particularmente em alguns bairros (já
sabeis que o povo é grande), a religião é tida em honra. E como vocês tendes
passado a vossa peregrinação? Como os olha o país? Com favor ou com
hostilidade?
INTEGRIDADE—
Acontece-nos o mesmo que a maior parte dos viajantes; algumas vezes o caminho
se apresenta aberto, outras, complicado; caminhamos ora morro acima, ora morro
abaixo; raras vezes há equilíbrio. Não tempos sempre vento em popa, nem é amigo
todo aquele que encontramos no caminho. Já nos vimos em apertos notáveis, e o
que ainda nos aguarda, o ignoramos; mas em geral, encontramos ser verdade o que
antigamente foi dito: que um homem bom tem que sofrer provas.
CONTRITO—
Falas de problemas; em quais vos encontrastes?
INTEGRIDADE—
Bom Coração é quem melhor pode dar relação disso.
BOM
CORAÇÃO— Fomos atacados três ou quatro vezes já. Em primeiro lugar, Cristiana e
seus filhos foram molestados por dos velhacos, os que acreditaram que lhes
tirariam a vida. Depois fomos acometidos pelos gigantes Grima, Pancada e
Mata-o-Bom. A este último antes bem o atacamos nós. Eis aqui como aconteceu:
fazia algum tempo que estávamos em casa de Gaio, "hospedeiro meu e de
toda a igreja" [23], quando nos
determinamos colher nossas armas e sair a ver se podíamos encontrar algum dos
inimigos dos peregrinos, já que nos haviam falado que naquele lugar havia um
que era tão notório. Gaio, quem morava na vizinhança, conhecia sua guarida melhor
que eu; fomos olhando para todas partes, e cobramos novo ânimo. Acercando-nos
ao seu antro, encontramos com este coitado de Fraca-Mente, a quem o gigante
havia seqüestrado pela força e ia acabar com ele. Quando nos viu, supôs,
segundo acreditamos, que tinha mais vítimas, e saiu ao nosso encontro, deixando
a sua pobre vítima na toca; então travamos uma luta encarniçada, e meu
antagonista lutou com muito empenho; mas no fim o jogamos no chão, lhe cortamos
a cabeça e a levantamos à beira do caminho para aterrar os que no futuro
pratiquem semelhantes iniqüidades. Para confirmar o que falo, eis aqui o homem
mandamento que foi como cordeiro arrancado da boca do leão.
FRACA-MENTE—
O relato é exato, como soube ao meu próprio custo, tanto quanto com grande
satisfação minha; ao meu próprio custo, já que em todo momento temia eu que o
mostro me roesse os ossos; e com satisfação, quando vi a Bom Coração e seus
amigos virem armados para me resgatar.
VARÃO-SANTO—
Duas coisas devem possuir os que vão em peregrinação, a saber: valor e uma vida
irrepreensível. Sem valor não podem continuar seu caminho; e se suas vidas são
relaxadas, desacreditam o bom nome dos peregrinos.
AMOR-PELOS-SANTOS—
Espero que esta admoestação não vos seja necessária. Mas é verdade que alguns
que empreendem o caminho, antes se declaram amigos da peregrinação estranha e
exótica sobre a terra.
NÃO-MENTIR—
Certamente, não levam os hábitos de peregrinos, nem possuem o valor dos mesmos;
não andam retamente, mas seus passos se entortam; têm um sapato bem colocado e
o outro ao invés, enquanto suas médias estão rompidas e desalinhadas; aqui
farrapos, ali um arranhão, com grave desonra de nosso Senhor.
PENITENTE—
Estas coisas deveriam causá-lhes pena; não é provável que os peregrinos e sua
carreira alcancem tanta graça como desejam aos olhos do mundo até que
desapareçam tais maculas e defeitos.
Nestes
discursos passaram o tempo até que se serviu o jantar, o qual, junto com o
descanso noturno, proporcionaram grande refrigério aos cansados viajantes.
Longos
dias permaneceram os peregrinos na Feira, albergados na casa de Mnáson, quem,
andando com o tempo, deu em casamento sua filha Graça a Samuel, e outra filha
sua, Marta, a José.
Sua
permanência, digo, já que o caráter do povoado havia mudado, foi de longa duração.
Por conseguinte, nossos peregrinos puderam travar conhecimento com muitas das
boas pessoas que ali moravam, e fizeram-lhes quantos serviços puderam.
Misericórdia, segundo seu costume, trabalhou muito em favor dos pobres, e era
jóia em sua profissão, em termos que as pessoas que eram objeto de sua
solicitude a abençoavam. E a dizer verdade, Graça, Febe e Marta tinham todas a
mesma disposição e fizeram muito bem em suas respectivas esferas. Tiveram todas
numerosa prole, de forma que o nome Cristiano, como referimos antes, prometia
viver e propagar-se no mundo.
Estando
ainda ali, aconteceu que chegou um mostro dos bosques, e matou muitos
habitantes do povo. Costumava também levar as crianças, e ensina-lhes a mamar
como aos seus filhotes. Ninguém do lugar atrevia-se a combater a fera, e todos
fugiam ao ouvir o ruído de suas pegadas.
O mostro
não se parecia com nenhum dos animais da terra; tinha o corpo como de dragão, e
possuía sete cabeças e dez chifres. Causava muitos estragos entre as crianças,
e era governado por uma mulher. Propunha condições aos homens, e os que amavam
mais suas vidas que suas almas as aceitavam e se submetiam a ele. Em vista
daquilo, Bom Coração, junto com os que vieram visitar os peregrinos em casa de
Mnáson, combinaram para saírem em busca da fera e tentar de livrar os
habitantes do povoado das garras de tão terrível mostro.
Saíram,
pois, ao seu encontro Bom Coração, Contrito, Varão-Santo, Não-Mentir e
Penitente, todos armados. A fera num princípio mostrou-se furiosa, e olhava com
grande desprezo seus inimigos; mas estes, que eram robustos e destros no uso
das armas, empreenderam o ataque contra ela em termos que a fizeram bater em
retirada; eles então voltaram à casa de Mnáson.
O mostro
tinha certas épocas para suas saídas e tentativas contra as crianças do
povoado; portanto, nessas épocas estes varões valorosos a esperavam e não
deixavam de acometê-la; tanto que não somente ficou ferida, senão também coxa,
de forma que já não podia causar tantas vítimas entre os rapazes como antes; e
alguns acreditam confiadamente que a fera morrerá à causa de suas feridas.
Estes
fatos estenderam por toda a cidade o renome de Bom Coração e seus companheiros,
e muitas pessoas que careciam do gosto pelas coisas espirituais, os tinham em
grande estima e respeito. Por este motivo os peregrinos não receberam muito
dano naquele lugar; porém, houve alguns malvados, cegos como uma toupeira e
torpes como bestas, que nem tiveram respeito àqueles heróis nem fizeram caso de
seu valor e de suas façanhas.
CAPÍTULO
17
Bom
Coração e sua companhia chegam aos prados deleitosos. Morte do gigante Desesperação
e demolição do castelo da Dúvida. Desalento e sua filha são liberados.
Chegou o
tempo em que os peregrinos deviam empreender novamente sua marcha, e começaram
a realizar os preparativos para a mesma. Chamaram seus amigos, tomaram conselho
deles e também dedicaram algum tempo a encomendar-se mutuamente à proteção de
seu Príncipe. Receberam vários presentes de seus amigos, consistindo todos em
coisas apropriadas para os fracos, tanto quanto para os fortes; para as
mulheres, tanto quanto para os homens, provendo-os do necessário para o
caminho. Disposta já a marcha, saíram, e depois de tê-los acompanhado seus
amigos até onde lhes foi possível, se encomendaram de novo ao amparo de seu
Rei, e se despediram.
Os que
eram da companhia dos peregrinos iam na frente, precedidos por seu guia. Em
consideração à fraqueza das mulheres e das crianças, deviam andar lentamente
conforme estes podiam suportar as fadigas da marcha; aconteceu que
Prestes-A-Coxear e Fraca-Mente tinham maior número de companheiros que
compadecessem suas fraquezas.
Uma vez
fora do povo, e despedidos seus amigos, pronto chegaram ao lugar onde Fiel
sofrera seu martírio; ali, pois, fizeram um alto, e renderam graças Àquele que
havia-lhe dado alento para suportar tão bem sua cruz; tanto mais, quanto que
acharam que seus padecimentos, com tanto valor e resignação suportados,
redundavam em beneficio deles mesmos.
Depois
disto, caminharam um bom trecho falando de Cristiano e de Fiel, e de como
Esperança uniu sua sorte à de Cristiano depois da morte do primeiro.
Deste
modo avançaram até chegar à colina chamada Lucro, onde estava a mina de prata
que havia afastado Demas de sua peregrinação, e na qual, segundo se crê, caiu
Interesse-Próprio e pereceu. Isto deu algo que pensar aos peregrinos; mas
quando chegaram ao antigo monumento que se encontrava do outro lado da
planície, ou seja, à coluna de sal que antes se elevava à vista de Sodoma e de
sua lagos fedorenta, se maravilharam, como já antes tinha feito Cristiano, de
que pessoas com tanto conhecimento e agudeza de engenho am Demas e seus
companheiros tivessem sido ofuscadas o suficiente como para extraviar-se em
semelhante lugar. Porém, quando refletiram bem, consideraram que as desgraças
que alcançaram a outras pessoas não deixam profunda impressão na natureza
humana, maiormente se o que se vê está revestido dos atrativos que tanto a
agradam.
Seguindo
os peregrinos seu caminho, vi que chegaram ao rio que se encontra deste lado
das montanhas das Delicias, e em cujos ribeiros crescem árvores frondosas, as
folhas dos quais servem para prevenir indigestões; onde os prados são verdes o
ano todo, e onde que perfeita segurança podiam deitar-se a descansar.
Nas
pastagens adjacentes ao rio havia currais e apriscos para ovelhas, e uma casa
para a criação dos cordeiros e das crianças das mulheres que saem em
peregrinação. Havia também um Homem compassivo que se ocupava deles, e que
levava os cordeiros em seus braços e pastoreava suavemente às grávidas.
Cristiana aconselhou suas quatro noras que confiassem ao cuidado deste Homem
seus pequeninos, para que ao lado daquelas águas fossem albergados, socorridos
e criados , e para que no porvir não faltasse nenhum deles. O Homem compassivo,
se alguém se perde, o recolhe de novo: "A perdida buscarei, e a
desgarrada tornarei a trazer; a quebrada ligarei, e a enferma fortalecerei; e a
gorda e a forte vigiarei. Apascenta-las-ei com justiça" [24]. Ali não lhes
falta comida, bebida e vestidos; e estão livres dos acossos dos ladrões e das
más pessoas, porque seu Pastor morrerá antes que se perca um daqueles que lhe
foram confiados. Além disso, estão seguros de receber boa educação e conselhos,
e são ensinados a andar pelas veredas retas, o que é um favor de não escasso
preço. Também ali se encontram águas delicadas, prados deliciosos, flores
belíssimas e uma grande variedade de árvores, especialmente das que dão fruto;
fruto não como aquele que comera Mateus, que caia fora do muro da horta de
Belzebu, senão fruto que proporciona saúde onde não existe, e a fortalece e
aumenta onde existe.
As mães
estavam muito contentes de encomendar seus filhinhos a tal pessoa, e outro
incentivo para isso foi que todo era às expensas do Rei; de modo que aquele era
como uma espécie de asilo para crianças e órfãos. Depois prosseguiram os
viajantes sua peregrinação, e ao ir ao Prado da Senda Extraviada, no qual
Cristiano e Esperança caíram presos do gigante Desesperação e foram
encarcerados no castelo da Dúvida, sentaram-se os peregrinos e consultaram
entre si sobre o melhor partido que podiam tomar. Alguns opinavam que, antes de
avançarem mais, já que eram tão numerosos e estavam capitaneados por um homem
como Bom Coração, seria melhor acometer o gigante, derrubar seu castelo e, se
achassem alguns peregrinos nele, deixá-los em liberdade. Os pareceres eram
diversos. Alguns duvidavam que fosse lícito pôr os pés em terra não consagrada;
outros diziam que sim podiam fazê-lo, com tanto que seu propósito fosse bom.
Então disse Bom Coração:
—Este
último asserto nem sempre é verdade; porém, tenho recebido ordens de resistir o
pecado e pelejar sempre em defesa da fé; e neste caso, com quem, digam-me, hei
de lutar senão com o gigante Desesperação? Acometerei, portanto, a empresa de
tirá-lhe a vida e de arrasar o castelo da Dúvida. Quem vai me acompanhar?
—Eu irei
—disse o ancião Integridade.
—E nós
também —agregaram os quatro filhos de Cristiana, que eram jovens e robustos.
Deixaram
as mulheres no caminho, e com elas a Fraca-Mente e Prestes-A-Coxear com suas
muletas, para protegê-las até sua volta; o que podiam fazer sem correr risco,
porque apesar da proximidade do gigante, simplesmente com ficar no caminho uma
criança as poderia conduzir.
Subiram
então Bom Coração, Integridade e os quatro moços ao castelo da Dúvida, em busca
do gigante Desesperação. Ao chegarem à porta do castelo chamaram com estrépito
inusitado. O velho gigante apresentou-se, seguido de perto por sua esposa,
Desconfiança.
—Quem é
—perguntou— o atrevido que de este modo incomoda o gigante Desesperação?
—Sou eu,
Bom Coração —respondeu o guia—, condutor de peregrinos e ao serviço do Rei do
país celestial, e te mando que abras a entrada, pois venho decidido a ir contra
ti e demolir teu castelo, depois de ter arrancado tua vida.
O
gigante Desesperação, que era mui corpulento, sentia-se invencível, e confiando
em sua força inusitada, dizia: "Hei de espantar-me de Bom Coração, a mim,
que já venci os próprios anjos?". Ajustou, pois, sua armadura e saiu. Na
cabeça levava um elmo de aço, um peitoral reluzente o protegia na frente, seus
pés estavam calçados de ferro, sua mão brandia uma formidável clava. Assim que
o gigante saiu de seu castelo, Bom Coração e seus companheiros o cercaram,
atacando-o de todas partes; e quando Desconfiança, a giganta, veio em seu
auxílio, o ancião Integridade a derrubou de uma tacada. Seu esposo fez uma
desesperada resistência, e ainda depois de derrubado pelos seus adversários
resistia com fúria, e defendia sua vida com um valor digno de melhor causa; porém
Bom Coração, com seu valor e força que o distinguiam, conseguiu finalmente
decapitar o gigante.
Ato
seguido, começaram a derrubar o castelo da Dúvida, tarefa muito fácil de levar
a cabo, uma vez morto seu dono. Este trabalho os manteve ocupado por espaço de
sete dias. Nos calabouços encontraram um tal de Desalento, quase morto de fome,
e sua filha Muito-Temor; salvaram os dois, mas era espantoso ver os cadáveres
que jaziam aqui e ali no pátio do castelo, e a quantidade de ossos humanos de
que estavam atestados os calabouços.
Consumada
esta façanha por Bom Coração e seus companheiros, tomaram sob sua proteção a
Desalento com sua filha Muito-Temor, que eram pessoas honestas, embora tivessem
estado encerradas no castelo da Dúvida, como prisioneiros do gigante
Desesperação. Sepultaram o corpo do tirano sob um monte de pedras, e tomando
sua cabeça desceram o caminho para contar aos outros o sucedido.
Enorme
foi o contento e gozo de Fraca-Mente e Prestes-A-Coxear, ao reconhecerem a
cabeça de Desesperação. Cristiana, quem sabia tocar a viola, e sua nora
Misericórdia o alaúde, vendo-os tão alegres, tocaram uma melodia. A
Prestes-A-Coxear entraram-lhe desejos de dançar, e tomando da mão a
Muito-Temor, bailou com ela uma dança. Verdade é que não podia dançar sem o auxílio
de uma muleta; mas não por isso deixou de brincar como um jovem; a moça também
se fez credora de muitos elogios pelo bem que correspondeu à música.
No que
diz respeito a Desalento, pouco caso fazia da música, pois estava mais para
comer que para dançar, tão grande era seu desfalecimento. Para seu alívio
imediato, Cristiana lhe deu um gole do licor que tinham, enquanto lhe preparava
algo para comer, e em pouco tempo o coitado reanimou-se e começou a recuperar
forças.
Vi
depois em meu sonho que Bom Coração tomou a cabeça do gigante e a colocou na
beira do caminho, frente mesmo à coluna que Cristiano havia erigido para
precaver os que viessem depois contra o risco de entrar naquele território.
Debaixo da cabeça gravou o guia numa pedra de mármore os seguintes versos:
Vede
aqui a cabeça do gigante
Que os
pobres peregrinos aterrava;
Seu
castelo já está agora derrubado,
E morta
sua mulher Desconfiança.
Bom
Coração, de obscuros calabouços
A
Desalento e sua filha libertou.
Quem
tenha dúvidas, que olhe para isto,
E serão,
como as nuvens, dissipadas.
Esta
cabeça liberdade anuncia,
E ao
vê-la, de prazer os coxos dançam.
CAPÍTULO
18
Os
peregrinos nas Montanhas das Delícias. Afável recebimento que foi-lhes
dispensado pelos Pastores.
Depois
da façanha mencionada, nossos bravos e valentes peregrinos continuaram
avançando até chegarem às Montanhas das Delícias, onde Cristiano e Esperança
haviam-se refrigerado com os deleites variados daquele lugar. Ali também
travaram conhecimento com os Pastores, quem lhes deram as boas-vindas, igual
que antes tinham feito com Cristiano e seu companheiro.
Vendo os
Pastores o numeroso séqüito que vinha após Bom Coração (a ele o conheciam bem),
lhe disseram:
—Boa
companhia trazes. Onde achastes todos estes?
O guia
apresentou os peregrinos, dizendo:
Aqui vem
a Cristiana com seus filhos
E suas
noras, qual bússola que marca
O norte,
e manifesta o caminho
Que leva
do pecado para a graça.
Integridade
peregrinando vem,
E Fraca-Mente
com Prestes-A-Coxear.
Como
ambos são sinceros, não quiseram
Ser
deixados por seus amigos para trás.
Desalento
também anda conosco,
E
Muito-Temor, sua filha, o acompanha.
Poderemos
hospedar-nos aqui mesmo,
Ou
deveremos prosseguir a marcha?
—Seja
bem-vinda tão formosa cia —disseram os Pastores—; aqui temos consolos e
comodidades para os fracos, assim como para os fortes. Nosso Príncipe vê o que
se faz ao mais pequenino destes; por isso a fraqueza não deve impedir-nos
mostrar hospitalidade.
Então,
conduzindo os peregrinos à porta do palácio, disseram:
—Vem,
Fraca-Mente, e tu, Prestes-A-Coxear, entra; avante, Desalento, e entra tu,
Muito-Temor. —depois, voltando-se para o guia, o advertiram—: A estes os
chamamos pelos nomes, porque são os mais dispostos a retirar-se; porém a vós
outros os deixamos na costumeira liberdade.
— Hoje
vejo que a graça resplandece em vossos rostos, e que sois verdadeiramente
Pastores de meu Senhor; não empurrastes com o ombro as ovelhas fracas, mas
antes, conforme vosso dever, espargistes flores em seu caminho para o palácio.
Entraram
então os débeis e os fracos, seguidos de Bom Coração e os outros. Uma vez
sentados os Pastores, perguntaram aos mais fracos:
—O que
precisais? Porque aqui as coisas devem conduzir à corroboração dos fracos e à
admoestação dos desobedientes.
Seguidamente
prepararam-lhes um festim de coisas nutritivas, fáceis de comer e agradáveis ao
paladar, depois de cujos obséquios retiraram-se a suas respectivas habitações
em busca de descanso.
Os
Pastores tinham por costume, devido a grande elevação das montanhas, mostrar
aos peregrinos, antes de sua partida, algumas das coisas raras que desde ali
podiam ver-se. Por conseguinte, na manhã seguinte em que a atmosfera estava bem
limpa, depois de terem tomado o café da manhã, conduziram os viajantes ao campo
e lhes mostraram o que antes haviam ensinado a Cristiano.
Seguidamente
os acompanharam a novos lugares. Primeiramente, dirigiram-se ao Monte das
Maravilhas, onde, a uma grande distância deles, viram um homem que com palavras
fazia levantar-se e mover-se as montanhas. Não compreendiam o significado
disto, pelo que os Pastores lhes disseram que o homem era filho de um tal
Grande-Graça (de quem já nos ocupamos na primeira parte desta obra), e que
estava ali para ensinar aos peregrinos a derrubar ou arrancar de seu caminho,
por meio da fé, quantas dificuldades se lhes apresentassem.
—Já o
conheço pela sua superioridade sobre a maior parte dos homens —disse Bom
Coração.
Dali os
conduziram a um outro lugar, chamado o Monte da Inocência, em cuja paragem
viram um homem, vestido completamente de brando, e dois sujeitos, chamados
Prevenção e Malevolência, que de contínuo lhe lançavam lodo; e eis aqui que
toda a imundícia que lhe jogavam cima em breves momentos cais, deixando suas
vestes tão brancas e limpas como se não tivessem se sujado.
PEREGRINOS—
O que significa isto?
PASTORES—
Esse se chama Piedoso, e suas vestes brancas representam a inocência de sua
vida. Os que lhe atiram lama são pessoas que odeiam a sua virtude; mas assim
como notastes que o barro não fica grudado em suas vestes, assim também
acontecerá com aquele que de verdade viva inocentemente neste mundo. Quaisquer
sejam os que tentem empanar a justa fama de tais homens, seu trabalho será
inútil, pois Deus, com sua inquebrantável justiça, não demorará muito em fazer
que sua inocência resplandeça como a luz do meio dia.
Seguidamente
os acompanharam até o Monte da Caridade, e lhes mostraram um homem que tinha na
frente dele uma peça de tecido, da qual cortava vestes para os pobres que o
rodeavam, a pesar do qual a peça não sofria nenhuma diminuição.
—Isto
—disseram os Pastores em resposta à pergunta dos peregrinos— é para mostrar-vos
que àquele cujo coração o impele a trabalhar pelos pobres, não lhe faltará com
que fazê-lo. "Quem saciar, também será saciado", e não foi o bolo que
deu a viúva ao profeta o que fez que houvesse menos farinha em seu barril.
Em outro
lugar indicou-lhes dois homens, Néscio e Sem-Juízo, que se ocupavam de lavar um
negro com a intenção de embranquecê-lo; porém quanto mais o lavavam, mais preto
parecia. Perguntados o que representava aquilo, disseram:
—Assim acontecerá
com a pessoa vil; todos os médios que se empreguem para alcançar um bom nome,
terminarão por fazê-lo ainda mais abominável. Assim são os fariseus e assim
será com todos os hipócritas.
Então
disse Misericórdia a sua sogra Cristiana:
—Mãe, se
me permite, desejaria ver a porta que está na colina, que comumente chamam de
postigo do inferno.
Tendo-o
manifestada sua sogra aos Pastores, todos dirigiram seus passos para lá. A
porta estava na ladeira da colina, e os Pastores, abrindo-a, disseram a
Misericórdia que ouvisse um tempo. Aplicando ela seu ouvido, ouviu a um que
dizia:
—Maldito
seja meu pai por ter afastado meus pés do caminho da paz e da vida!
Outro
falava:
—Tomara
que tivesse sido despedaçado antes que por salvar a minha vida perdesse a alma!
Enquanto
um terceiro exclamava:
—Se
pudesse voltar a viver, quanto me negaria a mim mesmo antes de vir a parar
neste lugar!
Então
pareceu à jovem que a terra gemia e tremia de medo sob seus pés, e quando se
afastou dali estremecida e com o rosto pálido, disse:
—Felizes
aqueles que se vêem livres deste lugar!
Tendo
visto todas aquelas maravilhas, os peregrinos foram conduzidos de novo ao
palácio, onde os Pastores os agasalharam com o melhor que havia na casa.
Misericórdia, como acontece algumas vezes com as mulheres, havia-se apaixonado
por um objeto que viu na casa, mas tinha vergonha de pedi-lo; tão veemente foi
seu desejo de obtê-lo, que quase adoeceu, o que chamou a atenção de sua sogra.
—O que
tens? —perguntou-lhe ela.
—Há no
comedor um espelho —respondeu—, do qual não posso afastar meus pensamentos; se
não consigo possuí-lo, temo que me aconteça alguma desgraça.
—Já
manifestarei teus desejos aos Pastores —disse Cristiana—; estou segura de que
não o negarão.
—Mas
—agregou a jovem— eu me envergonho de que eles saibam que desejem uma coisa...
—De
jeito nenhum, filha minha; longe de ser uma vergonha, é uma virtude ansiar uma
coisa como essa.
—Neste
caso —disse Misericórdia—, se te apraz, pergunta aos Pastores se desejam
vendê-lo para mim.
O
espelho era único em sua espécie. Olhando de um lado, via um fielmente
reproduzidas suas próprias feições; olhando do lado oposto, refletia o mesmo
rosto e imagem do Príncipe dos peregrinos. Tenho falado com os que são capazes
de falar sobre o assunto, e me disseram que olhando naquele espelho viram a
imagem coroada de espinhas em sua testa, e também as feridas em suas mãos, seus
pés e seu costado. Além disso, tal excelência possui esse espelho, que
representa o Príncipe da forma em que cada um deseja vê-lo, vivo ou morto, na
terra ou no céu, em sua humilhação ou em sua exaltação, vindo ao mundo para
sofrer ou vindo para reinar.
Cristiana,
portanto, dirigiu-se aos Pastores, que se chamavam Ciência, Experiência,
Vigilância e Sinceridade, e aparte lhes manifestou o anseio de Misericórdia.
Experiência—
Chama ela, chama-a; terá certamente quanto possamos proporciona-lhe.
Chamada
Misericórdia, lhe perguntaram:
—O que
desejas?
Misericórdia
(corando)— O espelho que está pendurado no comedor.
Sinceridade
correu em busca dele, e com unânime consentimento foi-lhe entregue. Então ela,
inclinando-se, agradeceu-lhes, dizendo:
—Por
isto sei que achei graça aos vos olhos.
Deram
também às outras jovens quantos coisas desejavam, e aos seus maridos grande
enaltecimento, por quanto havia-se unido a Bom Coração para dar morte ao
gigante Desesperação e derrubar o castelo da Dúvida. Em pouco tempo, as
mulheres todas receberam de suas mãos jóias de grande valor para enfeitar-se.
Quando
nossos peregrinos desejaram prosseguir seu caminho, os despediram em paz, sem
dar-lhes as advertências e admoestações que antes tinham dirigido a Cristiano e
seu companheiro. A razão disto era que tinham a Bom Coração por guia, quem,
estando à par de tudo, podia adverti-los do perigo mais oportunamente, isto é,
quando fosse iminente. As admoestações que Cristiano e Esperança receberam de
parte dos Pastores haviam caído no esquecimento antes que chegasse o momento de
utilizá-las. Por conseguinte, a este respeito a companhia levava vantagem sobre
os primeiros. Desta morada saíram os peregrinos, e enquanto caminhavam alçaram
suas vozes, cantando:
Que bem
são preparadas as mansões
Para deleite
do pobre peregrino!
Como
somos recebidos! Quantos dons
Para
quem anda no celestial caminho!
Nos
mostram as belas novidades
Para
dar-nos grande gozo em nossa vida;
E o
objeto de todas suas bondades
É o de
dar a nossa marcha alegria.
CAPÍTULO
19
Encontro
com Valoroso-pela-Verdade, quem se une à companhia; de sua história se compreende
como um homem pode triunfar em todas as dificuldades.
Pouco
tempo depois de ter-se separado dos Pastores, chegaram os peregrinos ao lugar
onde Cristiano havia encontrado a Volta-Atrás, natural do povo de Apostasia.
Bom Coração lembrou-os daquele incidente, dizendo:
—Este é
o lugar onde Cristiano encontrou a Volta-Atrás, com um letreiro em suas costas
explicando a natureza de sua rebelião. Este sujeito não quis ouvir nenhum
conselho, mas, uma vez caído, a persuasão foi completamente inútil para detê-lo.
quando este homem chegou ao lugar onde esta a cruz e o sepulcro, encontrou a um
que o cominou a contemplar aquele espetáculo; porém ele, rangendo os dentes e
chutando no chão, disse que estava resolvido a voltar para seu povo. Antes que
chegasse à Porta, Evangelista saiu-lhe ao encontro, e tentou persuadi-lo para
dirigir-se novamente ao caminho, mas Volta-Atrás o resistiu com muitos
impropérios, e escapou escalando um muro.
Continuaram
os peregrinos avançando, e precisamente no lugar onde antes Pouca-Fé tinha sido
roubado, viram um homem em pé, com uma espada desembainhada em sua mão e o
rosto todo ensanguentado. Perguntou-lhe Bom Coração:
—Quem és
tu?
—Me
chamo Valoroso-pela-Verdade. Sou peregrino, e me dirijo à Cidade Celestial.
Segui meu caminho, quando três homens me assaltaram, propondo-me três coisas.
Eu devia escolher entre: primeiro, associar-me a eles; segundo, voltar ao lugar
de onde venho; ou terceiro, morrer aqui mesmo. Ao primeiro respondi que, sendo
um homem leal e honesto desde havia muito tempo, não era de se esperar que
agora unisse a minha sorte com a de uns ladrões. Então me perguntaram que
resposta dava à segunda proposição. Disse-lhes que se não tivesse sofrido já
muitas moléstias e perigos no lugar de onde havia saído, não o teria abandonado;
mas tendo achado que me era completamente inconveniente, o deixei para seguir
este como. Logo me perguntaram o que dizia quanto ao terceiro. "Minha
vida", eu disse, "custou-me demasiado cara para que ligeiramente a
perca; além disso, não toca a vós fazer-me tal proposição, pelo que seja vosso
risco se me tocais".
Então os
três malvados, que se chamavam Brigadeiro, Desconsiderado e Pragmático, me
atacaram, e eu a minha vez desembainhei a minha espada para defender-me. Por
mais de três horas pelejamos corpo a corpo, um contra três. Meus contrários
deixaram trás de si alguns rasgos de seu valor, e levaram também alguns do meu.
Acabam de fugir; acho que, pressentindo a vossa chegada, escaparam.
BOM
CORAÇÃO— A luta era muito desigual, três contra um.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
É verdade; mas uns quantos a mais nada podem contra aquele que é partidário da
verdade. "Ainda que um exército se acampe contra mim (foi dito por um),
o meu coração não temerá; ainda que a guerra se levante contra mim, conservarei
a minha confiança" [25]. Além disso,
li nos arquivos que um homem sozinho lutou contra um exército. A quantos feriu
com uma queixada de jumento!
BOM
CORAÇÃO— Por que não alçaste a voz para que viesse alguém em teu socorro?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Assim o fiz, clamado ao meu Rei, quem como eu bem sei, pode ouvir e outorgar
ajuda invisível, e isso bastou-me.
BOM
CORAÇÃO— Te comportaste dignamente. Permitir-me-ás ver tua espada?
Valoroso-pela-Verdade
a mostrou. O guia, depois de examiná-la atentamente, disse:
—Ah, é
uma boa folha Jerusalém!
VALOROSO-PELA-VERDADE—
É sim. Tenha um homem em sua mão uma destas folhas para brandi-la e usá-la com
destreza, e poderá aventurar-se contra um anjo. Não deve temer seu acerto, com
tanto que saiba como manejá-la. Seus gumes não se embotam nunca. Penetra carne
e ossos, alma, espírito e tudo.
BOM
CORAÇÃO— A peleja durou muito tempo; é estranho que não estivesses cansado.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Lutei até que a minha mão ficou unida à minha espada, como se essa fosse a
continuação de meu braço, e o sangue escorregava de meus dedos; então foi
quando com maior valor combati.
BOM
CORAÇÃO— Bem fizeste; tens "resistindo até o sangue, combatendo contra o
pecado" [26].
Ficarás conosco, e partilharemos a mesma sorte, porque somos companheiros teus.
Tomando-o
então, lavaram-lhe as feridas e lhe deram do que tinham, para refrigerá-lo, e
depois caminharam juntos, recreando-se Bom Coração em sua companhia.
Valoroso-pela-Verdade em seguida ganhou-se um amor não fingido, porque o guia
encontrou nele um homem que sabia defender-se. Seguiram, pois, andando, e Bom
Coração, para animar os que eram fracos e débeis, fez muitas perguntas ao seu
novo companheiro de viagem. primeiro o interrogou acerca de seu país.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Sou do País das Trevas; ali nasci e ali estão ainda meus pais.
BOM
CORAÇÃO— Se não erro, o País das Trevas está na mesma região que a cidade da
Destruição.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Exato. O que me induziu a sair em peregrinação foi o seguinte: chegou em nosso
distrito um tal Fala-a-Verdade relatando o que tinha feito Cristiano, aquele
que saiu da cidade da Destruição, deixando mulher e filhos e abraçando a vida
de peregrinação; segundo dizia, tinha matado uma serpente que havia tentado
obstrui-lhe o passo, e tinha chegado felizmente onde se dirigia. Nos contou do
recebimento benévolo que tinha-lhe sido dispensado em cada uma das hospedarias
de seu Senhor, e da acolhida carinhosa que tinha recebido às portas da Cidade
Celestial. Ali nos disse o homem como fora recebido ao som das trombetas por
uma companhia de seres resplandecentes; como ressoaram todos os sinos da
cidade, pelo gozo que sentiam em recebê-lo, e como foi vestido de vestes
esplêndidas, junto com muitas outras coisas que é escusado de contar. Em uma
palavra: o forasteiro de tal modo contou a história de Cristiano e de sua
viagem, que senti meu coração arder em desejos de segui-lo; nem meus pais
puderam deter-me. Arranquei-me de seus braços, e até aqui vim em meu caminho.
BOM
CORAÇÃO— Entraste pela Porta Estreita, verdade?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Oh, sim; o mesmo homem nos disse que todos os nossos esforços seriam vãos se
não principiássemos entrando pela porta.
BOM
CORAÇÃO (Dirigindo-se a Cristiana)— Vejo que a notícia da peregrinação de teu
marido e o que por meio dela alcançou tem-se divulgado por todas partes.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Como! É esta a viúva de Cristiano?
BOM
CORAÇÃO— Sim, ela é; e estes são seus quatro filhos.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
E eles também são peregrinos?
BOM
CORAÇÃO— Em efeito, seguem suas pegadas.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Me alegro de verdade. Quão gozoso estará o bom Cristiano ao ver entrar pelas
portas da cidade aos que um tempo atrás não queriam acompanhá-lo!
BOM
CORAÇÃO— Sem dúvida, isso lhe infundirá grande alegria, e depois do gozo que
deve sentir de estar ele mesmo naquele lugar, grande será o que sentirá ao ver
sua esposa e filhos ali.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Alguns colocam em dúvida que nos reconheçamos uns aos outros lá. Já que estamos
nisto, desejaria saber o que opinas sobre o particular.
BOM
CORAÇÃO— Na acreditam que se conhecerão a si mesmos, ou que se regozijarão ao
ver-se rodeados de bem-aventuranças? Se não duvidam disto, por que não
reconhecer os outros também e alegrar-se de seu bem-estar? Além disso, sendo
que nossos parentes estão tão intimamente relacionados conosco (ainda bem que
este parentesco desapareça ali), por que não podemos logicamente supor que
estaremos mais contentes de vê-los ali que de não vê-los?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Bem; acredito que a razão te assiste quanto a isto. Tens algo a mais que me
perguntar acerca do começo de minha viagem?
BOM
CORAÇÃO— Sim, queria perguntar-te se teus pais desejavam deixar-te empreender a
peregrinação.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Muito pelo contrário, empregaram todos os médios que possam imaginar para persuadir-me
a ficar em casa.
BOM
CORAÇÃO— O que poderiam dizer contra semelhante vida?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Diziam que era uma vida preguiçosa, e que se eu não tivesse disposição para a
vagância e a vadiagem, nunca poderia aceitar a condição de peregrino.
BOM
CORAÇÃO— Alegaram por caso algo mais?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Me disseram também que o caminho mais perigoso do mundo era o dos peregrinos.
BOM
CORAÇÃO— Terão te indicado sem dúvida em que consistia o perigoso do caminho.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Sim, e entraram em muitos detalhes. Me falaram do Pântano da Desconfiança, no
qual Cristiano esteve a ponto de afogar; disseram que no castelo de Belzebu
havia arqueiros dispostos a lançarem seus dardos contra os que chamassem à
porta estreita; me falaram de bosques e tenebrosas montanhas, do desfiladeiro
Dificuldade, dos leões, dos três gigantes Sanguinário, Pancada e Mata-o-Bom.
Além disso, disseram que pelo Vale da Humilhação vagueia um ente imundo que
quase acabou com Cristiano, e que deveria atravessar o vale da Sombra-da-Morte,
onde abundam duendes e espetros, onde a luz são trevas e onde o caminho está
eriçado de redes, barrancos, arapucas e armadilhas. Depois se referiram ao
gigante Desesperação com o castelo da Dúvida, e a ruína que ali aguardava os
peregrinos; me disseram que deveria cruzar a Terra-Encantada, que é perigosa e
que, finalmente, chegaria a um rio que me separaria do país celestial, e para
salvar o qual não existe ponte alguma.
BOM
CORAÇÃO— Nada mais?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Não foi isso todo. Advertiram-me que no caminho abundam farsantes e toda classe
de gente má que aguardam os bons para desviá-los.
BOM
CORAÇÃO— Como comprovaram isso?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Me asseguraram que um tal Sábio-Segundo-o-Mundo espreita os caminhantes para
enganá-los; que Formalista e Hipocrisia estão continuamente por ali; que
Interesse-Próprio, Loquaz ou Demas se me aproximariam com suas seduções; que
Adulador me prenderia em sua rede; ou que em companhia de Ignorância presumiria
eu chegar às portas do céu, e somente conseguiria chegar ao postigo que existe
na ladeira de certa montanha, pelo qual seria arrojado pelo caminho mais curto
ao inferno.
BOM
CORAÇÃO— Estas notícias eram farto desanimadoras; e com isto deram fim a suas
persuasões?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Nada disso. Depois tentaram outros médios e me contaram de muitos que
antigamente tinham experimentado este caminho, e haviam-se adiantado muito nele
para ver se por ventura descobriam algo daquela glória que tantas pessoas
haviam ponderado, e com grande satisfação do país inteiro regressaram,
qualificando-se de fátuos por terem dado um único passo nessa direção. E para
mais senhas, me indicaram vários que tinham agido assim, como eram Obstinado e
Flexível, Temeroso e Desconfiança, Volta-Atrás e Ateu, junto com outros vários,
alguns dos quais, diziam, tinham ido mais longe em busca desses gozos , mas
nenhum deles tinha obtidos de seus esforços a menos vantagem.
BOM
CORAÇÃO— Objetaram algo mais para desalentar-te?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Sim; por último me falaram de um peregrino, chamado Receoso, que encontrou o
caminho tão solitário que nele todo não desfrutou de uma hora agradável; e de
um tal Desalento, que esteve a ponto de morrer de fome; além disso, o que quase
tinha esquecido já, agregaram que Cristiano mesmo, em volta de quem tanto
barulho tinham feito, apesar de todos seus esforços para conseguir uma coroa
celestial indubitavelmente pereceu afogado no Rio Preto, sem conseguir dar um
passo além, por mais que o tivessem escondido.
BOM
CORAÇÃO— E nada disso te desanimou?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Muito pelo contrário, todo quanto diziam me parecia que não tinha importância
alguma.
BOM
CORAÇÃO— Como assim?
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Foi porque ainda acreditava no que Fala-a-Verdade tinha dito, e esta convicção
me fazia desprezar toda classe de temores.
BOM
CORAÇÃO— Esta, pois, foi tua vitória, tua fé.
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Justo; cri, e por isso me pôs em caminho; me bati com todos quantos se opuseram
ao meu passo, e pela fé cheguei até aqui.
Olhem
bem estes exemplos:
Os que
queiram ser viajantes,
Que
rejeitem seus temores,
E não se
deixem assustar
Nem por
vento ou tempestade
Que se
opõem ao peregrino,
Quem,
firme, avança no caminho
Rumo a
Pátria Celestial.
Embora
lhe contem histórias
Para
infundir desalento,
Não conseguirão
o intento
Nem sua
força abaterão;
Os leões
não o arredam,
Nem o
inferno o intimida,
E com
marcha bem mantida
Chega ao
fim no Canaã.
Os
espetros e fantasmas
Que ao
cobarde aparecem
Com a fé
se desvanecem
E não
assustam o leal;
E
Satanás, derrotado
Pelo
bravo peregrino,
Deixa-lhe
livre o caminho
Para a
Pátria Celestial.
CAPÍTULO
20
Os
peregrinos passam pela Terra-Encantada. Miserável sorte que cabe aos que
descuidam seus deveres. Encontro com Firmeza, e a vitória que este alcançou
sobre as seduções do mundo.
Os
caminhantes se encontravam já próximos a Terra-Encantada, cuja atmosfera,
saturada de emanações soporíferas, adormecia os sentidos. O país estava coberto
de abrolhos e espinhos, exceto algumas clareiras aqui e lá, onde havia
templetes encantados, nos quais, se alguém deita a dormir, é pouco provável que
volte levantar-se ou acorde neste mundo. Traves, pois, destes matos, caminharam
nossos viajantes: Bom Coração, conforme com seu caráter de guia, ia na frente,
e Valoroso-pela-Verdade fechava a coluna, servindo de guardião, se por caso
algum demônio, dragão, gigante ou ladrão os atacasse pela retaguarda. Ambos iam
com as espadas nuas nas mãos, por quanto sabiam que aquele lugar era perigoso.
Ao mesmo tempo, animavam-se uns aos outros como melhor podiam. Bom Coração
tinha disposto que Fraca-Mente viesse imediatamente após ele, enquanto
Desalento estava sob o cuidado especial de Valoroso-pela-Verdade.
Pouco
tinham-se internado neste território, quando caiu sobre eles uma espessa névoa,
acompanhada de densas trevas, de forma que por algum tempo apenas podiam
distinguir seu companheiro, e se viam obrigados a certificar-se da presença dos
outros por meio de palavras, já que não andavam pela vista.
Não há
necessidade de dizer que se em semelhantes circunstâncias ainda os mais fortes
passavam por apuro, quanto pior não seria para crianças e mulheres, que eram
tenros de pés tanto quanto de coração! Porém, estimulados por palavras de Bom
Coração e Valoroso-pela-Verdade, saíram airosos do passo.
O caminho
também era muito pesado, pois os conduzia através de um terreno úmido e
lamacento, no qual não se via que houvesse nem uma única pousada ou bar onde
obter refrigério para os débeis, os que em seu cansaço gemiam, se lamuriavam e
suspiravam. Enquanto tropeçavam nos matos que embaraçavam seu caminho, se
entalavam na lama, perdendo nela seus sapatos, e como realizando incríveis
esforços conseguiam vencer as inumeráveis dificuldades que se apresentavam.
Neste
penoso caminho encontraram um templete que oferecia apetecível descanso aos
caminhantes; acima estava delicadamente entalhado e interiormente embelezado
com galhos e folhas, e mobiliado com bancos e assentos. Havia também um brando
divã, no qual os cansados poderiam deitar-se. Todo isto, dadas as circunstâncias,
era muito satisfatório, porque os peregrinos começavam a ressentir-se do
incômodo do caminho; mas nem sequer um deles fez menção de repousar ali. Pelo
que eu via, prestavam sempre tanta atenção aos conselhos do guia, e este tão
fielmente os advertia dos perigos ao se aproximarem deles e da natureza dos
mesmos, que pelo geral, quanto mais perto se achavam deles, era quando mais
valor cobravam, e mais se animavam mutuamente para refrear a vontade da carne.
Este quiosque chamava-se "O amigo dos preguiçosos", com o propósito
de tentar, se fosse possível, os caminhantes cansados a entregar-se ali ao
repouso.
Depois
vi que os peregrinos continuaram atravessando este lugar solitário, até
chegarem a um lugar onde podia-se facilmente errar o caminho. Tendo o guia a
luz do sol, não havia nenhuma dificuldade para evitar as sendas extraviadas;
porém agora, na escuridão, encontrava-se um tanto perplexo; mas levava no bolso
um mapa de todos os caminhos, tanto os que conduzem à Cidade Celestial como os
que se bifurcam com ele e levam a outras partes. Acendeu, portanto, uma luz
(porque nunca viaja sem ela) e examinou bem seu plano, o qual indicava-lhe que
naquele lugar devia cuidar-se de virar à direita. Se não tivesse tido a
precaução de olhar para o mapa, segundo todas as probabilidades, teriam
perecido afogados no lamaçal, porque um pouco mais para a frente, no fim da
senda mais transitável de todas, havia uma fossa, cuja profundidade se ignora,
cheia de lodo até a borda, colocada para perdição dos caminhantes.
Então
pensei para mim: "Quem, saindo em peregrinação, deixaria de se prover de
um destes mapas, para consultá-lo acerca de seu caminho em caso de
dúvida?"
Seguindo
sua viagem através desta Terra-Encantada, chegaram os peregrinos a um outro
templete construído à beira do caminho, no qual jaziam dois homens chamados
Descuidado e Demasiado-Atrevido. Estes dois sujeitos tinham chegado até este
lugar em sua peregrinação mas, sentindo-se cansados da viagem, entraram para
repousar, e um sono profundo apoderou-se deles. Nossos peregrinos, ao
percebê-los, se detiveram e mexeram as cabeças, sabendo que estavam numa
situação lastimosa. Consultando entre si o que deviam fazer, se deviam
continuar seu caminho deixando-os dormidos, ou entrar e fazer um esforço por
acordá-los, se podiam, porém com a precaução de cuidar de não sentar-se nem se
deixar seduzir pelos deleites que oferecia o quiosque, acordaram isto último.
Então
entraram e falaram com os homens, chamando-os pelos seus nomes, porque o guia,
por casualidade, os conhecia; porém, não receberam resposta alguma. Vindo isto,
Bom Coração os sacudiu, e fez o que pôde para acordá-los.
—Já te
pagarei quando tenha cobrado —disse um deles, a cuja resposta o guia meneou a
cabeça.
—Lutarei
—exclamou o outro— enquanto possa empunhar a minha espada.
Isto fez
rir às crianças, mas Cristiana perguntou:
—O que
significa isso?
BOM
CORAÇÃO— Estes falam dormidos. Seja que os firam, batam ou se lhes faça
qualquer coisa, responderão deste modo o como um deles disse antigamente,
quando as ondas do mar o açoitavam, e ele dormia como na ponta de um mastro:
"Quando acordar, ainda voltarei buscar". Já sabeis que os homens,
quando falam em sonhos, dizem qualquer coisa, mas suas palavras não são
dirigidas nem pela fé nem pela razão. Há incoerência entre o sair em
peregrinação e o sentar-se aqui. Eis aqui, pois, o que resulta quando pessoas
descuidadas vão de peregrinação: de vinte, um só se salva, porque esta
Terra-Encantada é uma das últimas guaridas que possui o inimigo. Por isso está
situada como vedes, quase no término do caminho, tendo assim, por conseguinte,
mais vantagem contra nós. Porque, raciocina o inimigo, quando terão estes
néscios maiores desejos de sentar-se que quando estejam cansados? E quando
estarão mais cansado que perto do fim de sua carreira? Por esta razão, digo, a
Terra-Encantada está localizada tão perto do país de Beulá (A casada [27]), tão próximo
ao final do caminho. Que todos os peregrinos, pois, olhem por si, não seja que
lhes aconteça o mesmo que a estes, que, como vedes, adormeceram e ninguém pode
acordá-los.
Então,
tremendo, ansiavam os peregrinos avançar; porém, antes de ordenar de novo a
marcha, rogaram ao guia que acendesse uma luz, para que pelo que restava de
caminho pudessem caminhar à luz de uma lanterna. Com esta ajuda terminaram bem
o caminho, ainda que fosse densa a escuridão.
As
crianças, porém, começaram a sentir uma fadiga excessiva, e clamaram Àquele que
ama os peregrinos, rogando-lhe que lhes fizesse mais cômodo o caminho. Em pouco
tempo levantou-se um vento que dissipou a névoa, deixando a atmosfera mais
limpa e aberta. Não tinham chegado nem com muito ao extremo da Terra-Encantada,
mas sim podiam distinguir-se uns aos outros e melhor escolher seu caminho.
Quando,
por fim, faltava pouco para ver-se fora deste território, acertaram a ouvir a
alguma distância um som solene, como de alguém ocupado numa conversação
interessante. Continuaram avançando, e perceberam um homem de joelhos, suas
mãos e olhos alçados para o céu, falando, segundo parecia, com ardor com alguém
que devia estar acima. Aproximaram-se os peregrinos; mas não puderam distinguis
as palavras, pelo que andaram devagar e silenciosamente até que houve acabado.
Concluída sua oração, o homem levantou-se e começou a correr em direção da
Cidade Celestial. Então Bom Coração o chamou, gritando:
—Hei,
amigo! Se te diriges, como acho, à Cidade Celestial, deixa que desfrutemos de
tua companhia.
O homem
então se deteve, e nossos caminhantes o alcançaram. Assim que Integridade o
viu, exclamou:
—Eu o
conheço!
—Quem é?
—perguntou Valoroso-pela-Verdade.
—É um
que vem de perto de onde eu habitava. Chama-se Firmeza, e certamente é
peregrino de boa lei.
Ao se
encontrarem, Firmeza disse a Integridade:
—Olá,
pai Integridade! És tu?
INTEGRIDADE—
Sim, sou eu.
FIRMEZA—
Quanto me alegro de encontrar-te neste caminho!
INTEGRIDADE—
E eu não menos de te ter visto de joelhos.
FIRMEZA
(corando)— Como? Me viste?
INTEGRIDADE—
Sim que te vi, e meu coração pulou de júbilo ante semelhante visão.
FIRMEZA—
E que pensaste?
INTEGRIDADE—
O que haveria de pensar? Pensei que tínhamos um homem formal em nosso caminho,
e que pronto gozaríamos de sua companhia.
FIRMEZA—
Feliz de mim se teu juízo não resulta errado; se não sou o que deveria ser, só
eu sofrerei as conseqüências.
INTEGRIDADE—
É grande verdade; mas teus temores me convencem ainda mais da harmonia que
existe entre o Príncipe dos peregrinos e tua alma; porque diz: "Bem-aventurado
o homem que nEle confia" [28].
VALOROSO-PELA-VERDADE—
Agora bem, irmão; rogo-te nos digas por que faz pouco tempo estavas ajoelhado.
Foi acaso que algumas novas dádivas tinham te imposto novas obrigações, ou quê?
FIRMEZA—
Eu vos direi. Estamos, como vedes, na Terra-Encantada, e eu, conforme
caminhava, estava refletindo sobre quão perigoso é o caminho nesta parte, e quantos
que chegaram até este ponto de sua viagem aqui foram detidos e perderam a vida.
Pensava também na classe de morte que aqui alcança os homens. Os que neste
lugar se perdem não falecem de nenhuma enfermidade fulminante. A morte destes
desgraçados não lhe é penosa, porque aquele que morre entregue aos braços do
sono parte daqui com desejo e prazer, e se entrega à vontade dessa doença.
INTEGRIDADE—
Viste, tu, aqueles dois homens que dormem no templete?
FIRMEZA—
Sim, vi lá a Descuidado e Demasiado-Atrevido, e pelo que presumo, ali
permanecerão até que apodreçam. Mas deixa-me continuar meu relato. Enquanto
andava entregue a tais reflexões, se me apresentou uma mulher, graciosamente
ataviada, mas muito velha, que me ofereceu três coisas, a saber: sua pessoa, sua
bolsa e seu leito. Pois bem, é verdade que acerca de estar cansado, eu tinha
sono, e também, como talvez saberia a feiticeira, sou pobre como um rato. A
rejeitei uma e duas vezes, mas não fez caso de minhas negativas, e sorria.
Então comecei a irar-me, mas isso não lhe interessava para nada. Voltou a
fazer-me oferecimentos, e disse que se eu desejasse me deixar governar por ela,
dar-me-ia honra e felicidade, porque —disse— "Sou dona do mundo, e pela
minha mediação os homens são felizes". Perguntei-lhe como se chamava, e me
disse: "Senhora Bolha". Essa notícia me afastou ainda mais dela; mas
ela não deixava de perseguir-me com suas seduções, então cai de joelhos, e
alçadas as mãos, elevei fervorosas orações Àquele que nos prometeu seu auxílio.
A mulher acabava de marchar-se quando chegastes, e eu, vindo-me a salvo deste
grande perigo, segui dando graças por isso, pois verdadeiramente acredito que
não me desejava bem nenhum, senão que, ao contrário, desejava deter a minha
viagem.
INTEGRIDADE—
Sem dúvida nenhuma, seus desígnios eram maus, mas, cala, já que me falas dela,
acho que já a vi ou li algo acerca dela.
FIRMEZA—
As duas coisas talvez.
INTEGRIDADE—
Senhora bolha! Não é ela uma mulher alta, bem parecida, e de pele clara?
FIRMEZA—
Certo, acertaste; esse é seu exato retrato.
INTEGRIDADE—Fala
muito suavemente, finalizando cada frase com um sorriso?
FIRMEZA—
A descreves perfeitamente.
INTEGRIDADE—
E tem um grande bolso a cada lado de seu vestido, no qual mete freqüentemente a
mão, e remexe seu dinheiro para fazê-lo soar como a delicia de seu coração?
FIRMEZA—
Se tivesses estado diante dela enquanto conversávamos, não poderias pintá-la
mais acertadamente, ou descrever sua aparência.
INTEGRIDADE—
Neste caso, quem a pintou era bom retratista, e o que escreveu a respeito dela
era verdade.
BOM
CORAÇÃO— Essa mulher é uma bruxa, e em virtude de suas feitiçarias esta terra
está encantada. Qualquer um que repouse sua cabeça em seu colo, melhor lhe
seria colocá-la no corte sobre o qual está suspendido o machado; e quaisquer
que sejam os que fixam os olhos em sua formosura, são considerados como
inimigos de Deus. ela é quem mantém em seu esplendor a todos os inimigos dos
peregrinos, e ela também é quem comprou muitas pessoas para fazê-las desistir
de sua peregrinação. É muito faladora, e ela e seus filhos sempre estão
perseguindo os peregrinos, bem fazendo elogios dos bens desta vida, bem os
oferecendo. É uma mulher atrevida e descarada, que não teme dirigir-se a
qualquer homem. Aos peregrinos pobres os ridiculariza, enquanto elogia em
extremo os ricos. Se num povoado encontra alguém bastante hábil para subtrair
dinheiro, ela cantará seus louvores de casa em casa. Tem muita afeição pelos
banquetes e comidas opíparos, e sempre frequenta as mesas melhor providas. Em
algumas partes fez correr a voz de que é uma deusa, e por isso alguns a adoram.
Tem períodos marcados e lugares públicos para enganar, e diz e protesta e
ninguém pode mostrar um bem comparável ao seu. Promete morar com os filhos dos
filhos, com tal que a amem e louvem. Em algumas partes e com algumas pessoas,
dá generosamente ouro de seu bolso como se fosse pó. O que mais gosta é que
corram detrás dela, que falem bem dela, e ver-se elogiada pelos homens. Jamais
se cansa de recomendar suas coisas, e aos que mais ama é àqueles que a tem e
mais alto concito. Promete a alguns coroas e reinos com tal que sigam seus
conselhos; contudo, tem conduzido a muitos à forca, e a muitíssimos mais ao
inferno.
FIRMEZA—
Oh, que ventura que tenha eu podido resistir a ela! Quem sabe onde teria me
arrastado?
BOM
CORAÇÃO— Só Deus sabe onde; todavia, sem entrar em pormenores, é verdade que
teria te encaminhado a muitas cobiças loucas e daninhas,que afundam os homens
em perdição e morte.
Foi ela
quem indispôs Absalão com seu pai, e incitou Roboão contra seu amo. Foi ela
quem persuadiu Judas a que vendesse o Senhor, e quem induziu a Demas a
abandonar a vida de peregrino piedoso; ninguém sabe quão grande é o mal que
faz. Suscita discórdias entre governadores e súbditos, entre pais e filhos, entre
vizinhos, entre esposos, entre a carne e o coração. Pelo qual, bom senhor
Firmeza, desejo que teu caráter se ajuste com teu nome e estejas firme, tendo
acabado com tudo.
Durante
estes discursos, os sentimentos dos peregrinos tinham flutuado entre o gozo e o
temor; finalmente, preponderou a gratidão, por ter podido evitar tão triste
sorte, e prorromperam todos no seguinte cântico:
Está
exposto o viajante a muitos riscos,
E tem
poderosos inimigos;
Muitas
sendas conduzem ao pecado,
E assim
deve marchar apercebido.
É
possível cair em vala oculta,
Em fogo
ou em pântanos escondidos;
Porém se
vigia em oração constante
Incólume
sairá de todos os perigos.
CAPÍTULO
21
Os
peregrinos se vêm rodeados de delicias no país de Beulá, e são chamados um por
um para passar pelo rio da Morte e entrar na Cidade Celestial.
Entretanto,
os caminhantes tinham atravessado já a Terra-Encantada, e os vi chegar ao país
de Beulá, onde o sol brilha de dia e de noite. Estando fatigados, se deram
durante algum tempo ao descanso, e já que este país estava sem reservas para o
obséquio dos peregrinos, e suas hortas e vinhedos eram do Rei do País
Celestial, lhes era permitido servir-se livremente de quanto havia. Pouco tempo
necessitam ali para reparar suas forças: os sinos se alçavam continuamente em
vôo, e as trombetas não cessavam de ferir o ouvido com suas notas melodiosas,
de modo que nossos viajantes não podiam dormir e, ainda assim, sentiam-se tão
refrigerados como se tivessem dormido profundamente. Neste lugar deliciosos
ouvia-se continuamente dizer aos que passeavam pelas ruas:
—Chegaram
mais peregrinos.
Outros
contestavam dizendo:
—E
tantos atravessaram hoje o rio, e foram admitidos nas portas de ouro.
Enquanto
isso, outra voz anunciava a chegada de uma legião de seres resplandecentes,
pelo qual se sabia que havia mais peregrinos em caminho, pois essa vem ali para
aguardá-los, para poder consolá-los depois de todas suas tribulações.
Levantaram-se então os peregrinos e se passearam, enquanto ressoavam em seus
ouvidos os sons celestiais e recriavam-se seus olhos com visões excelsas. Nesse
país, seus sentidos, igual que seu espírito, não recebiam nenhuma impressão
desagradável; somente quando experimentaram a água do rio que deviam cruzar,
pareceu-lhes algo amarga ao paladar, embora uma vez passada era mais doce.
Guardava-se
neste lugar um arquivo, onde constavam os nomes dos que antigamente tinham sido
peregrinos, junto com uma relação de todas suas proezas. No documento se
consignava que alguns, no momento de atravessar o rio, tinham se encontrado com
a maré alta, enquanto que para outros tinha havido grandes refluxos; alguns
haviam passado quase a seco, e outro o haviam achado transbordado.
As
crianças do povo costumavam entrar nos jardins do Rei e colher ramos de flores,
levando-os aos peregrinos como mostras de carinho ali cresciam também a resina,
o açafrão, o as ervas aromáticas, a árvore da canela, do incenso, a mirra e os
aloés, com uma grande variedade de especiarias. Com estas as habitações dos
peregrinos eram perfumadas durante sua permanência, e com as mesmas eram
ungidos seus corpos, a fim de que estivessem preparados para atravessas o rio
quando chegasse o tempo assinalado.
Neste
lugar permaneciam os peregrinos aguardando a hora da partida, quando se
divulgou a notícia de que tinha chegado ao povo um mensageiro da Cidade
Celestial com novas de grande importância para uma tal Cristiana, viúva de
Cristiano o peregrino. Perguntou-se por ela, e pronto acharam a casa onde se
alojava. Então o mensageiro lhe entregou uma carta, cujo conteúdo era o
seguinte: "Salve, boa mulher! Esta é para te fazer saber que o Mestre te
chama e espera que, vestida de imortalidade, comparecerás perante sua presença
dentro do prazo de dez dias".
Depois
de lê-lhe a carta, deu-lhe, em prova de que era mensageiro verdadeiro que vinha
a ordenar-lhe se apressasse a partir, uma prenda, que consistia numa seta
apontada de amor, a qual, introduzida suavemente em seu coração, operaria nela
pouco a pouco e com tanto acerto, que na hora marcada deveria partir.
Vendo
Cristiana que tinha chegado sua hora, e que deveria será a primeira de sua
companhia a atravessar o rio, fez vir a Bom Coração para participá-lhe a nova.
Este disse-lhe que muito se alegrava com a notícia, e que teria estado muito
contente se o mensageiro tivesse vindo para ele. Cristiana então lhe pediu
conselho com respeito aos devidos preparativos para a viagem. O guia lhe
facilitou todos os informes de que precisava, agregando:
—E nós
que te sobrevivemos, te acompanharemos até a margem do rio.
Em seguida,
chamando seus filhos, os abençoou, dizendo-lhes que ainda discernia, para
grande consolo seu, a marca que tinha sido colocada em suas testas; que se
alegrava muito de vê-los a seu lado e de que tivessem mantido suas vestes tão
brancas. Finalmente, legou aos pobres o pouco que tinha e encareceu seus filhos
e filhas que estivessem apercebidos para quando viesse o mensageiro em busca
deles.
Tendo
falado nestes termos a seu guia e a seus filhos, Cristiana mandou chamar a
Valoroso-pela-Verdade, e lhe disse:
—Em todo
te mostraste leal e sincero; sê fiel até a morte, e meu Rei dar-te-á uma coroa
de vida. Te suplico que tenham cuidado de meus filhos, e se em qualquer ocasião
os vês desfalecidos, os animes e consoles. Quanto às minhas noras, elas têm
sido fiéis, e no fim receberão o cumprimento da promessa.
Firmeza
lhe regalou um anel. Depois fez vir o ancião Integridade, e dele disse:
—Eis
aqui um verdadeiro israelita no qual não há engano.
—Espero
—disse ele— que terás bom tempo quando vás para o monte Sião, e me alegrarei de
ver que atravesses o rio a seco.
Porém
Cristiana lhe respondeu:
—Que o
passe seco ou molhado, anseio partir; porque seja qual for o tempo que reine
durante a travessia, bastante tempo terei ao chegar para descansar e enxaguar
meus vestidos.
Depois
entrou a vê-la Prestes-A-Coxear. A este disse-lhe Cristiana:
—Tua
viagem para cá tem sido dificultosa; o repouso parecer-te-á muito doce em
comparação a ela. Mas vigia e está preparado, porque na hora menos pensada
poderia chegar teu mensageiro.
Tendo-se
apresentado Desalento e sua filha Muito-Temor em seu quarto, lhes falou:
—Deveis
lembrar-vos sempre com agradecimento de vosso resgate das mãos do gigante
Desesperação e do castelo da Dúvida. A conseqüência daquele obséquio, tendes
podido chegar até aqui. Sede cuidadosos e desprezai todo. "Sede sóbrios
e esperai até o fim" [29].
Por
último, dirigiu-se a Fraca-Mente, dizendo: foste liberado da boca do gigante
Mata-o-Bom para que pudesses viver para sempre aos olhos dos viventes e visses
com alegria teu Rei; mas te aconselho que, antes te chame, te arrependas de tua
tendência a abrigar temores e dúvidas de sua bondade, não seja que quando venha
te vejas obrigado, por esse defeito, a entrar em sua presencia envergonhado.
Chegou o
dia em que Cristiana devia atravessar o rio, e um grande número de pessoas
tinham estacionado no caminho para vê-la empreender sua viagem. Mas eis aqui
que a margem oposta estava cheia de cavalos e carros que tinham descido para
escoltá-la à porte da Cidade. Então saiu e entrou no rio fazendo um gesto de
despedida aos que a tinham acompanhado até a beira. As últimas palavras que a
ouviram pronunciar foram:
—Venho,
Senhor, a ficar contigo e bendizer-te.
Quando
os filhos e amigos de Cristiana perderam-na de vista, e também ao séqüito que
na margem oposta a aguardava, regressaram a suas casas. Cristiana, por sua
parte, subiu, chamou e entrou pela porta, sendo celebrada sua chegada com as
mesmas aclamações de regozijo que antes tinham-lhe tributado ao seu marido.
Seus
filhos choraram sua partida, mas Bom Coração e Valoroso-pela-Verdade, gozosos,
tangeram sobre seus bem afinados instrumentos músicos, e voltaram os peregrinos
a seus respectivos alojamentos.
Com o
tempo chegou outro mensageiro ao povoado, tendo esta vez que ver com Prestes-A-Coxear.
Quando o encontrou, lhe disse:
—Venho
em nome dAquele a quem tens amado e seguido, embora apoiado em muletas; estou
encarregado de dizer-te que te espera para cear com Ele em sua mesa, em seu
reino, o dia depois da Páscoa; portanto, apercebe-te para essa viagem.
Deu-lhe
também sinal de que era mensageiro fiel, dizendo: "Te quebraram a corrente
de prata e rompido a vasilha de ouro".
Em vista
disto, Prestes-A-Coxear chamou seus companheiros e lhes disse:
—A mim
chamaram, e Deus certamente vos visitará também.
Rogou
então a Valoroso-pela-Verdade que lhe fizesse um testamento, e já que nada
tinha a deixar aos que o sobreviveriam senão muletas e bons desejos, disse:
—Estas
muletas as lego ao filho meu que andar em minhas pegadas, com mil desejos de
que seja melhor que seu pai.
Depois
de ter agradecido a Bom Coração sua bondade e bons serviços, preparou-se para a
viagem. Tendo chegado ao rio, exclamou:
—Já não
terei mais necessidade destas muletas, pois lá há carros e cavalos que me
aguardam.
As
últimas palavras suas que puderam distinguir foram:
—Bem-vinda
seja a Vida.
E assim
se submergiu nas águas do rio.
Mais
tarde participaram a Fraca-Mente que o mensageiro tinha tocado a corneta na
porta de sua habitação. Entrando este, disse-lhe:
—Venho a
dizer-te que teu Senhor tem necessidade de ti, e que dentro de mui pouco tempo
deves ver seu rosto em Glória; e em prova da verdade de minha mensagem, toma
isto: "Obscurecer-se-ão os que olham pelas janelas".
Então
Fraca-Mente fez vir seus amigos, e os comunicou da mensagem que tinham lhe
trazido, e da prenda que tinha recebido da verdade do mesmo, agregando:
—Sendo
assim que eu nada tenho para deixar a ninguém, para que fazer testamento?
Quanto a minha mente fraca, a deixarei aqui, porque não terei necessidade dela no
lugar aonde me dirijo. Não é digna de ser legada ao mais pobre dos peregrinos;
portanto, rogo-te, senhor Valoroso-pela-Verdade, a enterres num estercoleiro.
Dito
isto, e chegado o dia de sua partida, entrou no rio como tinham feito os outros.
segundo ia se internando, o ouviram dizer:
—Mantende-vos
firmes na fé e paciência.
E com
estas palavras chegou a outra margem.
Transcorridos
muitos dias, Desalento foi chamado com a seguinte mensagem:
—Homem
temeroso, esta é para advertir-te que estejas preparado o próximo domingo para
dar vozes de júbilo perto de teu Rei, pela liberação de todas tuas dúvidas. — E
agregou— Recebe isto em sinal de que o recado é verdade: "E fez que um
gafanhoto lhe fosse carga pesada".
Quanto
Muito-Temor, sua filha, soube disso, disse que acompanharia a seu pai.
—Já
sabeis —disse Desalento a seus amigos— o que temos sido minha filha e eu, e
quão incomodamente nos temos comportado em toda circunstância. Nosso testamento
é que ninguém jamais, desde o dia de nossa partida, participe de nossos servis
temores e desconfianças; pois já sei que depois de nossa morte serão oferecidos
a outros. Para dizer a verdade, estes são fantasmas que acolhemos quando
principiamos o caminho, e jamais pudemos desfazer-nos deles. Estes espetros
pretenderão serem acolhidos por outros peregrinos, mas por amor a nós, não lhes
abrais as portas.
Soou
finalmente a hora de sua partida, e dirigiram-se à beira do rio. As últimas
palavras de Desalento foram:
—Adeus,
noite! Bem-vindo seja o dia!
Sua
filha atravessou o rio cantando, mas ninguém pôde compreender o que dizia.
Aconteceu
que, algum tempo depois destes sucessos, chegou ao povoado um mensageiro que
perguntava por Integridade. Chegando a sua casa, entregou-lhe na mão as
seguintes linhas: "Se te ordena que de hoje em oito dias estejas preparado
para apresentar-te diante de teu Senhor na casa de teu Pai; e em prova de que
esta mensagem é verdadeira: "todas as filhas de canção serão
humilhadas".
Integridade
chamou seus amigos, e lhes disse:
—Morro,
mas não farei testamento. A minha integridade irá comigo; que o saibam os que
venham depois.
Chegado
o dia marcado, apercebeu-se para fazer a travessia. O rio, naquele tempo, tinha
transbordado em algumas partes; porém Integridade, que em vida tinha apalavrado
um tal de Boa-Consciência para que o auxiliasse, encontrou-o ali, e dando-lhe a
mão, o ajudou através das águas. Assim partiu Integridade do mundo, com as
palavras: "A graça reina!"
Depois
estendeu-se o rumor de que Valoroso-pela-Verdade tinha recebido chamamento pelo
mesmo correio, e prenda de que o aviso era verdade: "seu cântaro
quebrou-se junto a fonte".
Compreendendo
isto, participou seus amigos:
—Agora
—disse— vou à casa de meu Pai, e embora com muita dificuldade cheguei até aqui,
já não sofro os trabalhos e moléstias que a viagem me ocasionou. Deixo a minha
espada àquele que me suceder na peregrinação, e meu valor e perícia a quem
possa lográ-los. Levarei comigo minhas marcas e cicatrizes para dar testemunho
de que pelejei a batalha dAquele que será agora meu galardão.
O dia de
sua partida muitos o acompanharam até a beira. Entrando no rio, exclamou:
—Oh,
morte! Onde está teu aguilhão?
Logo,
submergido-se nas águas:
—Oh,
sepulcro! Onde está a tua vitória? [30]
Com
estes acentos de triunfo alcançou a outra margem, e foi recebido ao som de
trombeta.
Depois
disto chegou um aviso para Firmeza (o que os outros peregrinos encontraram de
joelhos na Terra-Encantada), cujo recado o mensageiro trouxe aberto em suas
mãos. O conteúdo da carta era que devia preparar-se para uma mudança de vida,
porque o Senhor não queria que permanecesse mais tempo longe dEle. Enquanto
Firmeza meditava sobre esta notícia, agregou o mensageiro:
—Não
deves duvidar da verdade de meu recado, pois eis aqui a senha: "A roda
está rompida sobre o poço".
Firmeza,
então, chamou ao seu lado a Bom Coração, e lhe disse:
—Ainda
que eu não tive a sorte de permanecer muito em tua companhia nos dias de minha
peregrinação, porém, desde que te conheço tens me servido de proveito. Quando
sai de casa deixei esposa e cinco filhos; rogo-te que a teu regresso (pois sei
que voltarás à casa de teu Senhor, com a esperança de que sirvas ainda de guia
para mais santos peregrinos), envies a minha família notícias de quanto me tem
acontecido ou acontecerá. Faze-lhes saber de minha feliz chegada a este país e
o estado bem-aventurado em que me encontro. Fala-lhes também de Cristiano e
Cristiana, sua esposa, e de como ela e seus filhos seguiram em pós de seu
marido e pai. Dize-lhes o feliz fim que teve ela e aonde foi. Tenho pouco ou
nada para enviar a minha família, a não ser súplicas e lágrimas.
Quando
Firmeza houve assim deixado arrumadas todas as coisas, e chegada já a hora em
que devia apressar-se a partir, desceu ao rio. Naquele tempo aconteceu que
havia um grande refluxo no rio; por conseguinte, Firmeza, quando chegou
aproximadamente à metade, deteve-se um tempo e falou com os amigos que o haviam
acompanhado:
—Este
rio —disse— tem infundido temor a muitas pessoas, e também a mim o pensar nele
tem-me espantado amiúde. Porém agora estou tranqüilo, e meus pés estão firmes
naquilo sobre que descansaram os pés dos sacerdotes que levavam a Arca da
Aliança quando Israel atravessou o Jordão. As águas, em verdade, são amargas ao
paladar e frias no estômago; mas o pensamento daquilo para onde me dirijo e da
escolta que me aguarda na outra beira, exalta meu coração.
Me vejo
agora no término de minha viagem; meus dias de trabalho concluíram. Vou agora
ver aquela cabeça que por mim foi coroada de espinhos, e aquele rosto que por
mim foi cuspido.
Até
agora a fé tem me dirigido, porém em diante será Aquele cuja companhia
constitui minhas delicias.
Tem-me
agradado ouvir falar de meu Senhor, e onde quer que tenho visto na terra o
rastro de seus pés, ali ansiei pôr também meu pé. Seu nome tem-me sido mais
aromático que os mais deliciosos perfumes, e sua vos docíssima, e mais desejei
eu contemplar seu rosto do que o homem pode ansiar pela luz do sol. Sua palavra
tem-me servido de alimento escolhido e de antídoto contra meus desmaios. "Me
susteve e guardou de minhas iniqüidades; sim, meus passos fortaleceu em seu
caminho".
Enquanto
estava nestes discursos, seu rosto sofreu uma mudança: "encurvou-se um
homem forte", e tendo exclamado: "Recebe-me, porque sem ti vou",
deixou de ser visto por eles.
Mas quão
glorioso era ver a multidão de cavalos e carros, de trombeteiros e flautistas,
de cantores e instrumentistas dos instrumentos de corda, que na margem oposta
os aguardavam para lhes dar as boas-vindas conforme subiam e entravam, um após
outro, pelas formosas portas da Cidade!
Pelo que
toca aos filhos de Cristiana, os quatro jovens que levou com ela, com suas
esposas e filhos, não esperei até que tivessem atravessado o rio. Além do mais,
desde que me afastei daquele lugar, ouvi dizer que ainda vivem; de forma que
contribuirão por algum tempo ao aumento da Igreja naquela parte.
Se me
tocar em sorte passar oura vez por ali, pode que dê aos que o desejem um relato
das coisas que no presente calo. Entretanto, digo aos meus leitores:
ADEUS
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